COMUNICAÇÃO

Defensoria reafirma combate à cultura do estupro em audiência pública

30/07/2016 0:44 | Por CAMILA MOREIRA DRT 3776/BA

Encontro reuniu movimentos sociais, autoridades, pesquisadora e estudantes sobre o tema

"O problema da violência sexual contra a mulher é antigo, mas profundamente atual pela repercussão que a expressão ‘cultura do estupro' ganhou na sociedade. Será que vivemos a ‘cultura do estupro' ou já não estaríamos num momento de cultura antiestupro? Talvez já tenhamos condições de questionar tal expressão – cunhada por feministas norte-americanas brancas, muito pouco ou nada relacionada à questão racial, e baseada predominantemente nas relações heterossexuais, e chegarmos a uma cultura de antiestupro". Foi com essa abordagem que a doutora em Ciências Criminais da PUC/RS, a pesquisadora Carmen Hein Campos, iniciou sua exposição na audiência pública promovida pela Defensoria Pública do Estado da Bahia DPE/BA nesta sexta-feira, 29, para tratar da cultura do estupro.

Na Bahia, a audiência reuniu pessoas de movimentos sociais, além de autoridades como a secretária de políticas para as mulheres, Olívia Santana, a presidente da Comissão dos Direitos da Mulher da Câmara de Vereadores, Aladilce Souza, Márcia Teixeira – promotora de Justiça, Mônica Kalile – superintendente de políticas para as mulheres do município, a capitã Paula, da Ronda Maria da Penha, a psicóloga Selma Evangelista, do Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual (Viver), além da pesquisadora Carmen Hein, convidada especialmente para o evento. O encontro cujo tema foi: A Defensoria Pública é contra a cultura do estupro, e você? É uma iniciativa da Comissão dos Direitos da Mulher do Condege, que pretende mobilizar vários estados do país para discutir sobre o tema e pensar formas de enfrentamento à cultura do estupro no Brasil. Condensadas, as propostas surgidas desses encontros serão reunidas em um relatório a ser levado ao Congresso Nacional.

Por que a Defensoria é contra a ‘cultura do estupro'?

Para o defensor público geral, Clériston Cavalcante de Macêdo, a Defensoria diz não à cultura do estupro por ser inadmissível que em pleno século XXI ainda tenhamos uma sociedade que minimize o sofrimento de uma mulher estuprada e que insista em atribuir a culpa a ela. "As mulheres querem um basta. E eu diria mais: as instituições precisam dizer um basta também. A Defensoria baiana está fazendo e irá fazer ainda mais para prevenir e evitar que histórias cotidianas de estupros coletivos e individuais sejam uma realidade em nosso Estado", sentenciou Macêdo.

Para a defensora pública Roberta Braga, que atua no Núcleo de Defesa da Mulher – Nudem, a DPE diz não à cultura da violência contra a mulher porque o quantitativo de denúncias de violência sempre lhe chamou atenção. "A subnotificação dos números de crimes de estupro nos faz perguntar onde está o problema. A vítima muitas vezes não se reconhece como vitima de estupro. O sistema de Justiça está acolhendo essa vítima? Como entendermos que embora ela não se reconheça vítima, estamos sim diante de uma pessoa que sofreu uma violência sexual?

Leia mais – Cultura antiestupro: o que elas querem

No Brasil, cerca de 50 mil casos de estupro são notificados por ano, e estima-se que exista uma subnotificação de 500 mil casos. Na Bahia, em 2015, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, foram registrados 2.818 casos de estupro, sendo 214 na Região Metropolitana e 531 em Salvador. O Nudem atendeu, de 2008 a 2016, 206 mulheres vítimas de violência sexual.

Já para a defensora pública Gisele Aguiar, da Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, a DPE é contra a cultura do não acolhimento das pessoas vítimas de violência sexual. Seja ela criança, adolescente, mulher, homem ou LGBT. De acordo com Gisele Aguiar, para além de lutar por uma mudança de consciência, é preciso também fortalecer serviços de proteção a essas vítimas, como o serviço Viver, que acolhe tanto as vítimas de violência sexual como os familiares destas. Com um número de profissionais insuficientes, a situação do serviço foi motivo de instauração de um PADAC pela Defensoria. "Não queremos apenas a reabertura da unidade de Periperi e a chegada da assessoria jurídica. O que escutamos das mães que nos procuram é que não são delegacias que curam suas filhas, mas sim, o serviço de acolhimento onde são atendidas", revelou Gisele Aguiar.

APOIO

Assim como a defensoria baiana, outras instituições também reafirmaram seu "não" à cultura do desrespeito e da opressão de diferentes formas contra as mulheres na Bahia e no Brasil.

Segundo a secretária de Políticas para as Mulheres, Olívia Santana, o Brasil foi forjado num processo brutal de conquistas e de pilhagem de gente. "A base estrutural da sociedade se deu a partir da violência. O estupro foi parte do processo da formação da sociedade brasileira, com as mulheres negras e índias", lembrou. Para ela, o desafio é o combate permanente a toda e qualquer forma de violência, a garantia da justiça e da mudança de mentalidade.

De acordo com a presidente da comissão dos Direitos da Mulher da Câmara, Aladilce Souza, o direito da mulher a uma vida digna é um direito pelo qual o grupo luta todos os dias na Câmara. "Temos buscado colocar a questão da violência contra a mulher como prioridade, por ser uma tragédia dado os números que temos hoje. Na Bahia estamos conseguindo um ritmo de articulação".

Articulação, que para a promotora de Justiça Márcia Teixeira é extremamente importante também. "Assim como a Defensoria, o Ministério Público tem tido uma preocupação com o tema gênero e a violência contra a mulher e contra pessoas LGBTs. O possível fechamento do Viver tem inquietado os promotores tanto da violência contra a mulher contra aqueles que atuam na infância e juventude. Estamos cobrando a audiência solicitada com o governador também", afirmou.

VIVER

Selma Evangelista, psicóloga do Viver, chamou atenção de todos para a essencialidade do único serviço de atenção e proteção a pessoas vítimas de violência sexual e dos seus familiares. O Viver é atualmente responsável por ações de acolhimento e acompanhamento social, psicológico, jurídico, enfermagem, médica. É a partir dele, por exemplo, que as vítimas recebem a contracepção de emergência e profilaxia de DST e Aids. Em 2015, foram 561 casos novos atendidos, sendo 121 adultos, 182 adolescentes e 258 crianças acolhidas pelo serviço. "Num dos casos que atendemos recentemente, o de um homem, inclusive, ele me disse que agora estava num lugar com alguém que o escutasse", revelou Evangelista. A insuficiência de profissionais atuando atualmente no serviço, entretanto, ameaça a manutenção do atendimento. Das duas unidades projetadas para garantir o acolhimento às vítimas, apenas uma está em funcionamento.

REVITIMIZAÇÃO

A revitimização também foi um dos pontos abordados pela pesquisadora Carmen Hein. Para ela, o sistema penal tal qual funciona hoje revitimiza tanto as vitimas quanto os agressores. Segundo Hein, o estupro com violência pode ter uma lesão física, mas sem violência não tem lesão, o que não justifica a submissão de algumas mulheres a exames em Institutos Médicos Legais. "Por que se o estupro não deixa lesão elas têm de ser submetidas ao IML? Talvez por puro corporativismo". Para a pesquisadora, o centro da Lei Maria da Pena são as mulheres, e não o sistema se justiça ou de segurança. "O fortalecimento tem de ser da rede, uma rede composta pela área de saúde, de acolhimento. O melhor lugar para acolher essa mulher são lugares como o Viver".

Diretora da Esdep, para a defensora pública Firmiane Venâncio, a ideia do sistema posto na Lei Maria da Penha é a ideia do acolhimento. Segundo Venâncio, o que precisa ser alterado é como o sistema de justiça tem estado numa perspectiva mais fechada e verticalizada do que deveria."Não queremos quebrar o sistema, mas fazê-lo funcionar".

Ao ler o manifesto "Parem de nos Matar", assinado pela Rede de Mulheres Negras da Bahia, a ouvidora geral da DPE, Vilma Reis, apontou desafios ainda considerados difíceis de superar. "A morte de mulheres pela ação do patriarcalismo nas mãos dos maridos, amigos, namorados e vizinhos; a morte pela violência obstetrícia ou no silêncio do aborto; a morte pela ausência de aparelhos como mamógrafos", que segundo o manifesto, não funcionam o ano inteiro, enquanto que verbas consideráveis são investidas em campanhas para realizar o Outubro Rosa. Para Vilma Reis, assim como para tantas vítimas, "morremos quando não sabemos do que morremos".

Representantes de movimentos sociais também tiveram voz e vez na audiência pública. Boa parte das proposições e encaminhamentos a serem consolidados e transformados num relatório a ser apresentado tanto no Congresso Nacional quanto nos estados onde aconteceram as audiência públicas, vieram de mulheres que também responderam um sonoro NÃO à cultura do estupro.

Participaram ainda da audiência pública a subcoordenadora da Especializada de Direitos Humanos, Eva Rodrigues, que coordenou os trabalhos da mesa; a corregedora geral da DPE, Maria Auxiliadora Teixeira e a corregedora-adjunta, Josenilda Ferreira; além das defensoras públicas Viviane Luchini, do Nudem, e Fabiana Miranda, do Pop Rua.