COMUNICAÇÃO
Após nove meses desaparecido, andarilho reencontra família em Feira de Santana com ajuda da Defensoria Pública
Com problemas mentais, homem andou mais de 200km de Feira até Ribeira do Pombal, onde passou a viver em situação de rua. Defensoria acionou a Justiça para que ele fosse cuidado em uma unidade terapêutica
Sozinho, de cidade em cidade. Vivenciando frio, sede e fome, com apenas uma bermuda no corpo. Foi assim que a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) encontrou Tiago Silva, em Ribeira do Pombal (BA). O homem de 34 anos estava em situação de rua, sem sequer lembrar quem era e qual família ou lugar pertencia.
Sem qualquer documentação e com problemas psiquiátricos, a única palavra que conseguia articular era ‘Emanoel’ – nome pelo qual passou a ser chamado. A equipe psicossocial da DPE/BA em Ribeira do Pombal o encontrou seminu, debaixo de uma árvore, com um espelho na mão, no qual se olhava várias vezes. O relatório psicossocial indicava que ele parecia falar sozinho e tinha uma compulsão por apertar repetidamente a área abaixo do olho, o que deixou uma marca na pele.
Na última sexta-feira, 24 de maio, Emanoel voltou a ser Tiago, em um reencontro emocionante com a sua família, em Feira de Santana, após nove meses vivendo como ‘andarilho’ e mais de 200 km percorridos a pé até o destino final, onde foi acolhido. Aliviado com o retorno do irmão – desaparecido desde setembro de 2023 – Diego Silva conta que ele saiu quando todos estavam dormindo.
“Sozinho pela estrada, com risco de atropelamento… Deus guardou! Ele encontrou a chave de casa e saiu de madrugada, só com a roupa do corpo. Acordei pela manhã e a porta estava aberta, corremos para fazer o boletim de ocorrência, mas até então estávamos sem notícias”, comentou. Diego conta que foi a segunda vez que o irmão sumiu. Na primeira – em que ele também se apresentou como Emanoel – passou um mês longe de casa, e, desde então, tinham cuidado para que ele não fugisse.
Segundo ele, o falecimento da mãe dos dois, em 2017, agravou a condição psicológica do irmão, que tem uma personalidade introspectiva e diagnóstico inicial de esquizofrenia simples. A partir daí, passou a cuidar tanto do irmão quanto de seu pai, que ficou enfermo, perdeu mobilidade e hoje precisa usar cadeira de rodas.
“A única pessoa com quem Tiago conversava um pouco era minha mãe. Ainda assim, só o básico. Mas ele me reconheceu, chamou meu nome, fiquei muito feliz. Ele gosta de ficar isolado, no lugarzinho dele, sossegado. Convive com a gente normalmente, só não gosta de muita gente conversando perto”, comentou Diego.
Hoje, Tiago está acolhido em uma unidade terapêutica em Feira de Santana, recebendo visitas diárias da família, e aguardando melhorar o quadro psiquiátrico para retornar ao convívio em sociedade e ser cuidado em liberdade, com acompanhamento individual em um Centro de Atenção Psicossocial.
Andarilho
Em Pombal, ninguém tinha noção de quem era ‘Emanoel’, só que havia chegado pela estrada, andando, vindo de Tucano, município vizinho que fica a meia hora de distância (de carro). A Defensoria foi acionada pela rede de assistência social do Município após tentativas sem sucesso das equipes de abordagem social em se comunicar com ele.
A dificuldade em comunicar suas próprias demandas levou a Defensoria a tomar uma série de medidas para proteger os direitos de Tiago. De acordo com a defensora pública Larissa Rolemberg Farias, que atua na cidade, acionar o serviço de papiloscopia do Estado – que identificou as digitais para encontrar a sua família – foi apenas um deles.
Como estava usando a calçada para dormir e andava com um espelho na mão, comerciantes locais acionaram a polícia diversas vezes para retirá-lo das ruas. Segundo Larissa, desde fevereiro de 2024, a Defensoria vinha movimentando a rede de proteção para que ele não fosse alvo do processo de “higienização social” pelo qual passam pessoas que vivem em situação de rua, que costumam ser indesejáveis pela sociedade.
“As pessoas ficaram com medo e começaram a gravar vídeos dele nas esquinas dos estabelecimentos, dizendo que era uma pessoa perigosa, por estar com o espelho na mão. Mas ele não causava mal a ninguém. Conversei com a PM e com a guarda municipal, para mostrar que não havia risco e que era uma questão psiquiátrica, que precisava de assistência do poder público”, conta Larissa.
A DPE acionou a secretaria de assistência social municipal buscando a concessão de algum auxílio, mas a falta de documentação inviabilizou inicialmente os benefícios.
Atuação judicial e em rede
Como Tiago precisava de cuidados psiquiátricos, a Defensoria acionou a Justiça e conseguiu uma liminar em face do Estado e do Município – apenas utilizando o prenome “Emanoel” – para que fosse internado em uma unidade especializada que cuidasse da saúde mental. Enquanto aguardava a vaga, ficou aos cuidados do Hospital Geral Santa Tereza, de Pombal.
“Conseguimos transferi-lo para uma clínica de recuperação e tratamento de saúde mental em Feira de Santana. A partir daí, solicitei com a Polícia Civil os exames papiloscópicos e veio uma equipe de Salvador coletar as digitais”, detalha a defensora. Segundo ela, com o apoio da polícia e do Instituto de Identificação Pedro Mello, foi descoberto que Emanoel era coincidentemente de Feira de Santana, onde já estava sua família. “Muitas pessoas já tinham desistido, mas a Defensoria foi até o fim, movimentou toda a rede municipal e estadual para recuperar e reintegrar o Tiago à sociedade”.
Luta Antimanicomial
A defensora Larissa Rollemberg chama a atenção para a importância de não criminalizar casos como o de Tiago. Enquanto era ‘Emanoel’, ela precisou intervir algumas vezes para que ele não fosse preso, porque, embora não representasse perigo à população, houve situações em que estava passando fome e tentou, por exemplo, pegar alimentos de moradores(as) que passavam com sacolas de supermercado.
Segundo a defensora, também houve tentativas de imputar a ele crimes como importunação sexual, porque, como não tinha teto – e nem a noção do que é um ambiente público e um espaço privado – às vezes Emanoel expunha as partes íntimas. “Ele simplesmente não tinha noção de que tinha que ser em um local privado. Por falta de discernimento, fazia as necessidades em público”, reflete.
“Em geral, há um preconceito que leva a sociedade a pensar que o caminho mais fácil é imputar um crime, para recolher a pessoa, mas elas precisam ser cuidadas”. Segundo Larissa, é necessário acabar com os reflexos da “higienização social” – corrente preconceituosa de pensamento que não reconhece pessoas em situação de rua e com saúde mental abalada como parte integrante da sociedade.
“Se você ver as fotos dele na época… Hoje, depois que vem sendo acompanhado e medicado, é outra pessoa”, concluiu a defensora, feliz pelo acompanhamento que foi feito pela DPE diariamente até Emanoel voltar a ser Tiago.
Confira mais sobre a atuação da Defensoria e a luta antimanicomial aqui.