COMUNICAÇÃO

Articulando Redes da Defensoria discute atuação profissional no cuidado de pessoas em sofrimento psíquico

05/11/2020 18:08 | Por Tunísia Cores - DRT/BA 5496

Evento foi realizado nesta quarta-feira, 4, e destacou dimensões do trabalho, como a territorialização, o saber e a solidão, esta última em contraste com a dimensão da coletividade

Uma reflexão acerca da atuação do profissional que lida com pessoa em sofrimento psíquico, não apenas por meio da perspectiva do trabalho, mas, sobretudo, da esfera do indivíduo, o Articulando Redes foi realizado nesta quarta-feira, 4, e trouxe como tema um questionamento: “O que nos impede de cuidar em liberdade?”. O evento foi criado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, por meio da equipe de Saúde Mental ligada à Especializada de Direitos Humanos e, devido ao distanciamento social, foi realizado virtualmente com transmissão pelo Youtube e Facebook da Instituição (@DefensoriaBahia).

Mediado pela doutora em Saúde Coletiva e assistente social da DPE/BA, Patrícia Flach, o Articulando Redes teve como primeira convidada Renata Filgueiras Pimentel, que é trabalhadora da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, militante da luta antimanicomial e representante do Coletivo Intercambiantes. Ao introduzir o tema, a profissional lembrou que a liberdade é uma questão cara para a reforma psiquiátrica.

“A reforma psiquiátrica traz o direito ao cuidado em liberdade como marco fundamental para atenção às pessoas que se encontram em intenso sofrimento psíquico e que só tinham como proposta de ‘tratamento’ o manicômio, com seu modelo de exclusão e mortificação das subjetividades. Falar em reforma não é falar sobre algo que mudou da noite para o dia. Falamos de mudança de paradigma e cultura, que é uma mudança processual, extremamente difícil e complexa”, explicou a convidada.


Ao longo da sua fala, Renata Filgueiras apresentou dimensões que devem ser consideradas ao pensar sobre o processo do cuidado em liberdade, de acordo com a sua visão. São elas a territorialidade, o saber e a solidão, esta última em contraste com a coletividade. Sobre a primeira dimensão, é preciso considerar questões como a história de vida da pessoa que se encontra em sofrimento psíquico, além das relações e os conflitos existentes em seu contexto.

“O que a gente vivencia nessa dimensão do trabalho no território é que é de extrema importância para o cuidado das pessoas onde a vida acontece, mediando as relações, trabalhando a mudança de cultura junto às famílias, à comunidade, pensando esse sofrimento que as pessoas estão vivenciando como algo que está dentro de um contexto”.

Neste ponto, existem entraves como o baixo número de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPS AD nos municípios, que interfere não apenas no senso de acolhimento por parte do indivíduo, que precisa se distanciar do seu território, mas também traz limitações para o trabalho do profissional. Tais limitações também produzem institucionalizações.

“Se uma pessoa está o dia inteiro, todos os dias da semana, dentro do serviço como o único lugar que ela acessa, não seria aí também uma institucionalização? Precisamos pensar em um cuidado em liberdade que não está somente fora dos muros do manicômio. Não é apenas acabar com a instituição manicômio. Existem diversas formas de dominação, cerceamento, objetificação dessas pessoas na nossa realidade, nossa sociedade e nosso serviço”.

Sobre a dimensão do saber, a representante do Coletivo Intercambiantes destaca que o profissional está situado em uma posição onde deve saber sobre o outro e responder sobre com cuidá-lo. No entanto, o profissional se encontra diante de pessoas em intenso sofrimento psíquico e, nem sempre, encontra caminhos para auxiliá-lo. O primeiro passo, neste caso, é aceitar que não é um sujeito onipotente e compartilhar tal situação com a equipe para buscar soluções coletivas.

“O trabalhador é um sujeito que se vê esgotado em muitos momentos, sem energia e adoecido, com manifestações inclusive em nossos corpos. Tenho aprendido a olhar os sinais do meu corpo que falam sobre mim, meu contexto, meu trabalho. Sobre essa rede que é insuficiente e as diversas portas fechadas que nós encontramos. Muitos trabalhadores vivenciam contextos difíceis de vida, com violência em casa, mas chegam no trabalho e precisam cuidar das pessoas”.

Renata Filgueiras afirma que é neste cenário onde se insere a terceira dimensão, a da solidão, quando é preciso cuidar do outro enquanto o próprio profissional se encontra adoecido. O segredo, no entanto, não é o isolamento, mas sim compartilhar com o coletivo a sua própria experiência.

“A dimensão da solidão é desafiadora em nosso trabalho. Encontrar o caminho da coletividade para dar conta de situações que são tão mobilizadoras, adoecedoras, limitantes. Devemos colocar alguns entraves que encontramos, mas é importante olharmos para a dificuldade não a partir de um lugar que paralisa, pois não é possível construir nada. Precisamos encontrar o caminho da potência, da possibilidade, pois se eu consigo encontrar o que é possível para mim, consigo me movimentar nessa direção. Se o meu braço está junto com outros, é possível ter uma efetividade muito maior”, finalizou.

Médico sanitarista e professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Emerson Merhy foi o segundo convidado do Articulando Redes desta quarta-feira. Em sua abertura, resgatou a questão do não saber no contexto atual da pandemia de Covid-19 e o quanto este cenário reforça a importância fundamental da ciência.

“Não saber é um desafio que nos convoca, não só para produzir saber como um ato de um cérebro genial, mas também para ir ao encontro do outro. A produção de um não saber exige de nós uma simetria no encontro, uma relação sem soberania. O enfrentamento dessa condição de não saber é a grande plataforma de produção de uma inteligência coletiva”, afirmou.

Merhy abordou o desafio do cuidar em liberdade diz respeito não apenas a existência para além dos muros dos manicômios, que não se reduzem apenas a uma estrutura física e literal, mas como processos que geram a castração do desejo, a diminuição das conexões existenciais. A manicomialização torna-se, então, um processo que atinge não apenas os pacientes, mas também os trabalhadores, os quais operam segundo a lógica do empobrecimento das existências.

“A produção da liberdade não é um ato imaginário qualquer, é o enriquecimento efetivo das existências. Quanto mais rica em conexões múltiplas, mais livre a existência será e mais desejos é convocada a produzir. Isso é absolutamente substancial quando pensamos no conjunto de experiências que vivemos e que ninguém arrancará de nós, pois está escrita nas nossas relações e modos de viver. É impossível quem já experimentou tudo isso, viver manicomialmente”.

A respeito do questionamento lançado no tema do encontro, Emerson Merhy lança uma outra provocação: “quem nos impede de cuidar em liberdade além de nós mesmos? Esse mundo que nos impõe regras éticas que não desejamos? Nós podemos inventar outros. Quando colocam o articulando redes, estão nos convocando para essa produção de tecer redes na qual eu vou agregar elementos”, finalizou.

Supervisor da equipe de saúde mental da Defensoria, Antônio Nery Filho abordou a diferença entre o cuidar e o tratar, destacando o teor humanizado e permanente existente na primeira conduta. “A palavra cuidar significa tomar as mãos do outro nas suas e sustentá-las. Tratar é dar remédio, é biomedicalizar, destituir o sujeito de desejo. É impor ao sujeito uma realidade medicamentos produzida por um efeito transitório”. Antonio Nery Filho também resgatou a dimensão da solidão, trazida por Renata Filgueiras, além da construção da liberdade, a partir do compartilhado por Emerson Merhy.