COMUNICAÇÃO

Audiência Pública no Senado debate regulamentação da maconha

23/09/2014 16:22 | Por

"A maconha deve ser regulamentada como as bebidas alcoólicas e cigarros. A lei deve permitir o cultivo caseiro, o registro de clubes de autocultivadores, licenciamento de estabelecimento de cultivo e de venda de maconha no atacado e no varejo e regularizar o uso medicinal." (Exposição da proposta contida na SUG 08/14)

O diretor da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia (ESDEP), Daniel Nicory do Prado, participou, nesta segunda-feira, 8, da 4ª Audiência Pública, realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). O relator é o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). O objetivo desses encontros é debater a Sugestão 8/2014, de iniciativa popular, que propõe a regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha (Cannabis sativa).

A Sugestão 8/2014 foi proposta pelo carioca André de Oliveira Kiepper, no início deste ano, por meio do Portal e-Cidadania, e obteve mais de 20 mil assinaturas de apoiadores. A proposição é uma iniciativa popular que pode transformar-se em projeto de lei.

Incumbido de elaborar relatório sugerindo a admissão ou não da tramitação como projeto de lei, o senador propôs a realização de uma série de audiências públicas para embasar seu relatório. Seu objetivo é ouvir a sociedade sobre aspectos científicos, médicos e jurídicos, assim como conhecer experiências internacionais.

O texto propõe que seja considerado legal "o cultivo caseiro, o registro de clubes de cultivadores, o licenciamento de estabelecimentos de cultivo e de venda de maconha no atacado e no varejo e a regularização do uso medicinal".

O primeiro debate aconteceu em junho e contou com a participação do secretário Nacional de Drogas do Uruguai, Julio Calzada. Ele destacou o efeito positivo da legalização do comércio da droga sobre a criminalidade naquele país. Também ressaltou que depois da descriminalização do uso da droga, registra evolução do consumo e de seus efeitos colaterais semelhantes aos países que mantêm a criminalização.

O coronel Jorge da Silva, ex-chefe do Estado Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, durante o segundo debate, disse que os índices de violência demonstram que o atual modelo proibicionista não trouxe os resultados positivos esperados. É bom lembrar que a proposta de regulamentação é específica para o consumo da maconha.

Nas três audiências já realizadas houve várias manifestações contrárias à regulamentação. Eles destacaram, por exemplo, o risco de a maconha levar ao consumo de drogas consideradas mais nocivas, o antigo argumento da "porta de entrada".

Um estudo detalhado sobre a situação legal da substância ilícita mais usada no mundo, solicitado pelo senador Cristovam Buarque, foi desenvolvido e apresentado por consultores do Senado. A conclusão é de que o futuro da maconha no país é o da legalização controlada, com a regulação de todo o processo - da produção e comércio à posse e ao consumo de drogas -, que ficaria sujeito a controle e fiscalização pelo Estado. No enato, eles advertem que seria contraditório descriminalizar a droga sem haver um mecanismo legal que permita o consumo, o que acabaria com o mercado ilícito. Assim como é hoje no Uruguai.

"A gente não tem direito de colocar essa questão debaixo do tapete. Precisamos de regras que impeçam que os jovens caiam nas drogas. O que se discute é se da maneira como estamos agindo, com proibição, estamos enfrentando essa tragédia ou se é melhor de outra forma. É preciso decidir se é melhor proibir ou regulamentar o uso", sustentou o senador.

Quarta audiência - Participaram dos debates desta audiência, o defensor público, Daniel Nicory, o promotor público do Mato Grosso do Sul, Sérgio Harfouche e o juiz de Direito da Coordenação Estadual da Associação de Juízes para a Democracia da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros, Gerivaldo Alves Neiva.

O defensor foi convidado como especialista nos efeitos da política de drogas sobre o sistema carcerário. Nicory coordena o trabalho desenvolvido pelo Observatório da Prática Pena na ESDEP, com a colaboração de estudantes de Direito, como pesquisadores em nível de iniciação científica. Na audiência, ele apresentou dados de pesquisas empíricas realizadas em Salvador, por sua equipe, e em São Paulo, pela USP.

"Foram a minha reflexão acadêmica e a minha experiência como defensor criminal, que me levaram à posição que tenho hoje. Sou favorável à regulamentação, num modelo semelhante ao que hoje existe para o tabaco, com proibição da propaganda do produto, do seu consumo em lugares públicos fechados, com campanhas de conscientização quanto aos males e alta taxação", afirmou.

Nicory defende a regulamentação do uso da maconha, como forma de criar um sistema legal de segurança para os usuários, hoje sujeitos à penalização e outros tipos de constrangimentos, como também de esvaziar o monopólio de comercialização pelo tráfico e estancar o processo violento de controle do "movimento".

Para o defensor, é necessária uma distinção básica para que a discussão possa evoluir. Em sua opinião não se pode confundir o usuário da maconha, assim como o usuário de bebidas alcoólicas, o chamado "consumo social", com o uso abusivo de qualquer substância psicoativa. "Esta é uma questão que tem de ficar clara para as pessoas, pois há uma grande confusão quando se generaliza as formas de consumo", disse.

Na sua avaliação sobre o resultado das pesquisas sobre a população carcerária de Salvador e do Estado de São Paulo, especialmente, os presos por tráfico não resta dúvida de que a atual política é inócua.

"O fato é a nossa a lei é que não estabelece quantidades objetivas para definir a conduta do usuário ou do traficante, ou, o que seria ideal, para criar várias faixas do uso penalmente atípico, a posse de droga ainda proibida ao tráfico, faz com que sejam presos com acusação seriíssima de tráfico de drogas, crime hediondo, pena de reclusão de 5 a 15 anos, pessoas com esse perfil. Quase metade em São Paulo e quase 40% na Bahia, portanto 50g da substância ou menos, ou seja, nada", afirmou.

Também o juiz Gerivaldo Alves Neiva avalia que a Lei 11.343/2006, que trata da criminalização do porte de droga, é pouco clara sobre a definição do que seria uso pessoal. Com isso, disse Neiva, a questão acaba dependendo da decisão dos próprios juízes.

Para o magistrado, a forma repressiva como é encarado o problema das drogas resultou apenas no encarceramento em massa de jovens, pobres, periféricos e excluídos das oportunidades sociais. A Comissão Global de Políticas sobre Drogas, segundo ele, avalia que os recursos gastos na erradicação da produção, repressão aos traficantes e criminalização dos usuários não foram capazes de reduzir a oferta nem o consumo.

Enquanto os debates se sucedem, avança o entendimento em torno da regulamentação do uso medicinal da maconha. É o caso de Vital Bezerra Lopes, presidente interino da OAB-PB, e Pedro da Costa Melo Neto médico residente Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que defendem o uso do canabidiol (um dos princípios ativos da maconha). O médico chegou a convocar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e os conselhos de medicina a firmarem uma posição clara e urgente sobre o assunto.

Regulação - Hoje, o canabidiol está na lista das substâncias psicotrópicas elaborada pela Anvisa, cuja comercialização é proibida. Assim, pacientes que precisam fazer uso terapêutico do composto dependem de uma autorização especial, da Anvisa ou da Justiça. Caso contrário têm de importá-la de forma ilegal.

Recentemente, a Justiça Federal na Paraíba autorizou a importação do CBD para 16 pacientes - 12 crianças, dois adolescentes e dois adultos -, diagnosticados com doenças neurológicas que provocam crises convulsivas severas.

A Anvisa discute a mudança da classificação do CBD da lista de substâncias psicotrópicas para a de substâncias sujeitas a controle especial. O assunto, porém, foi tratado pela última vez, durante uma reunião realizada em dia 29 de maio. Ou seja, há mais de 90 dias.

"De lá para cá, a Anvisa nunca mais falou. Do dia 29 de maio para cá, o meu filho teve em torno de 1.305 crises convulsivas. Ele tem pelo menos 15 crises convulsivas ao dia. Nós estamos aqui, senador, porque essa é a nossa vida, é a vida dos nossos filhos", disse Sheila Geriz, uma das mães que conseguiram a liminar na Justiça Federal da Paraíba, durante uma das audiências.

Sobre o uso medicinal da maconha, Harfouche sustentou que o artigo 14 do Decreto 5912/2006 já determina que o ministro da Saúde tem competência para autorizar o plantio de qualquer substancia para uso medicinal. Segundo ele, isso encerra a necessidade de discussão sobre a regulamentação da maconha para uso recreativo.

"Ninguém fica aqui falando sobre morfina medicinal. Simplesmente vai lá e compra. Quem depende do canabidiol também pode se beneficiar pelo mesmo decreto", comentou.

Próximo debate - Cristovam considerou os depoimentos pessoais importantes na busca de uma convergência em torno da regulamentação dos diversos usos da maconha. E adiantou a intenção de ouvir, na próxima audiência, o relato de mães que tiveram filhos presos por consumo.

Para o próximo debate da CDH, que deve acontecer no dia 22 de setembro, foram convidados o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto; o diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Joaquim Falcão; a subprocuradora-geral da República, Rachel Dodge e a pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP).

Caso seja transformada em projeto, a proposta deverá passar, além da CDH, pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e, possivelmente, pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Somente após o parecer dessas comissões, é que a matéria deverá ir ao Plenário e, se aprovada, ser encaminhada à Câmara dos Deputados para uma nova discussão.