COMUNICAÇÃO
CNJ passa a permitir audiências de custódia por videoconferência e fragiliza direitos fundamentais dos presos em flagrante
Ausência física do juiz fragiliza a detecção de situações de abuso e impede contato sensível com pessoas já em condição ou situação de vulnerabilidade
Cancelando norma estabelecida em artigo de resolução tomada em julho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu na semana passada nova determinação que passa a permitir a realização de audiências de custódia por videoconferência. De acordo com o novo dispositivo, que altera o artigo 19 da resolução 329/2020, a medida pode agora ser adotada pelos tribunais em todo país quando não for possível a presença física do juiz.
Instituídas desde 2015, as audiências de custódia devem ser realizadas presencialmente em até 24h após a prisão em flagrante, quando o juiz decide se a prisão foi ilegal e deve ser relaxada ou se o acusado deve responder ao processo em liberdade, com ou sem medidas cautelares, ou ainda se deve seguir em regime de prisão.
Pela nova norma administrativa, os tribunais agora têm a prerrogativa do uso de videoconferência para executar esta decisão. Embora em seu relatório, o presidente do CNJ e presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, tenha apontado a necessidade do expediente por conta da pandemia da Covid-19, o texto da resolução não faz menção ao momento de calamidade.
Para o defensor público e um dos coordenadores da Especializada de Execução Penal da Defensoria, Maurício Saporito, a nova norma vai na contramão da garantia dos direitos humanos e prejudica o relevante contato direto entre juiz e presos.
“As audiências de custódia não são apenas para decidir sobre a manutenção ou não da prisão. Elas são essenciais para controlar o ato da prisão, ouvir do próprio acusado, face a face, o que aconteceu, buscando acima de tudo garantir respeito à sua integridade e aos direitos humanos. Mesmo com algumas medidas preventivas, como câmeras que captam imagens em 360°, o vídeo não alcança transmitir a realidade, nem realiza uma conexão comunicativa mais convincente”, comentou Saporito.
De acordo com o defensor público Hélio Soares, que atua no escritório da DPE/BA em Brasília e é um dos coordenadores do Grupo de Atuação da Estratégica das Defensorias Públicas nos Tribunais Superiores, a alteração do CNJ permitindo a realização de audiências de custódia por videoconferência não cumpre como o previsto nos tratados internacionais os quais o Brasil assinou e participa.
“A legislação não deixa qualquer margem interpretativa, não permitindo brechas jurídicas, enfim, não há espaço para outra interpretação possível. A audiência de custódia deve ocorrer com a pessoa apresentada fisicamente ao magistrado no mesmo local, e não por meio remoto. A audiência de custódia exige a presença física do preso diante do juiz para que ele possa aferir determinadas condições físicas e anímicas [psíquicas] da pessoa presa, que não se mostram acessíveis por meio da videoconferência”, comentou Soares.
Para a jurista, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, Kenarik Boujikian, a resolução é um retrocesso já que as audiências de custódia representam um progresso implementado pelo Brasil e reconhecido por órgãos internacionais que apontavam o caso brasileiro como modelo a ser adotado e aprimorado por outros países do continente americano.
“A audiência por videoconferência, que não é audiência de custódia, não tem a possibilidade de combater as violações de direitos humanos, que sabemos pululam país afora. Certamente os casos de tortura, de violência policial, os maus tratos não serão desvelados e o Judiciário será mais um autor desta triste história de violações, que se repete diariamente, atingindo uma população, majoritariamente jovem e negra”, comentou Boujikian.
Tortura e maus-tratos
Desde a pandemia, por outro lado, as audiências de custódia não estão ocorrendo presencialmente e foram substituídas por autos eletrônicos. A manifestação das partes, acusação e defesa, assim como as decisões dos juízes estão sendo tomadas virtualmente, com o preso tendo contato apenas com as autoridades policiais. Neste contexto, um estudo da DPE/BA, que será lançado está quinta-feira, 3, aponta que caíram drasticamente os relatos dos presos quanto à situações de violência sofridas.
O estudo realizado pela assessoria de pesquisa do Gabinete do Defensor Público Geral analisou todos os casos de prisão em flagrantes na Bahia durante a pandemia, com recorte no período de meados de março a junho deste ano. De acordo com a pesquisa coordenada pelo defensor público Lucas Marques, que deve ser divulgada em dezembro, enquanto que no mesmo período em 2019, foram registrados 345 casos de violência relatados pelos presos (com 82% deles cometidos pela Polícia Militar), foram apenas 2 registros de mesmo tipo no mesmo intervalo no ano de 2020. Isso com o número total de prisões em flagrante variando pouco para o período análogo de um ano para o outro.
O vice-presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Vinícius Assumpção, explica que a nova resolução não se concilia com o pacto de São José da Costa Rica que fundamenta a norma das audiências de custódia ao prever a necessidade de conduzir a pessoa presa à presença de um juiz. Além disso, Assumpção aponta que os maiores impactados com a redução da garantia são os vulneráveis e que nesta altura do enfrentamento da pandemia, a medida já não se justifica.
“Não se pode ignorar a situação de pandemia, no entanto, hoje, já informações sanitárias para controle da pandemia e com os cuidados necessários é possível retomar certas realidades essenciais como são, evidentemente, as audiências de custódia. A virtualização impede a verificação de inúmeras situações de maus-tratos. Como diversos estudos já apontaram, as pessoas atingidas por estes retrocessos no processo penal são as pessoas negras e mais pobres. São pessoas já vulnerabilizadas e é por isso mesmo que é tão comum que se admita a restrição de direitos fundamentais como esta resolução o faz”, comentou Vinícius Assumpção.
Ainda para Kenarik Boujikian, mesmo no auge da pandemia, com os necessários cuidados sanitários necessários, as audiências de custódia deveriam seguir sendo realizadas em todos os processos.
“A decisão do CNJ é completamente desarrazoada e se choca com o entendimento firmado, pelo próprio CNJ, STJ e organismos internacionais que audiência de custódia, para cumprir sua função, não pode ser por outra via, senão a presencial. Diversos estados da federação estão realizando as audiências. Na verdade não há qualquer dificuldade para que sejam realizadas. Parece mais um desejo, muito presente em juízes, de manter distância dos presos, não sentir o cheiro, não saber das dores. Fechar os olhos”, observou a jurista.
Diretora da ONG Tortura Nunca Mais/Bahia, Diva Santana considera que a nova medida, ainda que justificada pelo quadro da pandemia, pode abrir um precedente que signifique uma redução de direitos ao enfraquecer o sentimento de segurança dos presos neste processo, já que os abusos e crimes cometidos contra estes não conhecem punições.
“São conquistas que podem ir se perdendo. A tortura ainda é um método utilizado mesmo contra um preso comum. A audiência de custódia [presencial] é um avanço nos direitos, porém, nem mesmo ela impede que o sujeito deixe de sofrer violência antes. E muitas vezes, nem mesmo na audiência de custódia ele vai relatar isso. O povo segue maltratado nas mãos da polícia, que, apesar de alguns avanços, é historicamente formada para agredir. É uma violência que também não se altera porque segue impune”, destacou Diva Santana.