COMUNICAÇÃO
E agora, José? Acusados sem provas, açougueiros são inocentados após apelação da Defensoria Pública da Bahia
Dupla aguardava conclusão de um processo de uma década que poderia custar-lhes até 5 anos de prisão por suposta venda de carnes impróprias para consumo. A perícia para comprovar que os alimentos estavam “estragados” foi feita dois meses após a apreensão
Uma década de aflição que chegou ao fim. A Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) conseguiu a absolvição, em segunda instância, de dois amigos sócios que tinham uma distribuidora de carnes, no bairro popular Valéria, em Salvador.
Por unanimidade, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia reconheceu a inocência dos vendedores, após apelação da DPE/BA, e encerrou o processo penal que acusava a dupla de venda de produtos impróprios para consumo, uma odisseia na Justiça que se iniciou em 2013.
Há exatos 11 anos, no dia 10 de abril de 2013, o frigorífico da dupla passou por uma fiscalização abrupta no bairro. Acompanhados de fiscais sanitários, policiais adentraram o estabelecimento e apreenderam todas as 10 toneladas de carne que se encontravam na câmara de refrigeração e nas salmouras.
“Eu fiquei completamente desnorteado. Não sabia o que estava acontecendo. Foram truculentos, mandaram largar todas as facas – material que usávamos para desossar os bois – e já chegaram recolhendo as carnes”, destaca José Evaldo de Macedo, 60 anos, um dos sócios inocentados pela Justiça.
José já havia sido avisado por uma pessoa para “abrir o olho”, que estavam denunciando o frigorífico por suposto trabalho clandestino. Na ocasião, ele ainda estava regularizando a razão social da empresa junto com o sócio, pois seria preciso fazer uma mudança no CNPJ, de distribuidora para indústria.
Embora já trabalhasse há uns 25 anos no ramo da carne – na época ele tinha 49 anos -, foi o primeiro momento em que José assumiu um negócio desse porte e a ter lucro considerável.
“Estava despreocupado, achava uma bobagem essa denúncia, porque era mentira. A fiscalização chegou lá, estávamos todos fardados, não tinha nenhum menor de idade, tínhamos notas fiscais, as carnes estavam refrigeradas, e tinham as que haviam sido descongeladas para colocar na salmoura”, explica.
Em depoimento no processo penal, alegou que a única possível irregularidade encontrada seria alguns espinhaços que estavam fora da câmara fria, em fase de descongelamento para salgar. Não tinham ainda dinheiro para comprar o tumbler – equipamento industrial para moer a carne fresca -, então era necessário descongelar antes. Segundo José, era a única coisa fora do padrão, apesar de todos os frigoríficos locais trabalharem desta forma.
E agora, José?
Durante a abordagem, seu José Evaldo ficou sentado na escada, desolado, enquanto anos do seu trabalho iam embora junto com a fiscalização. Ele nem imaginava que o problema maior ainda estava por vir: o processo penal que os dois sócios teriam que responder.
A pena para quem vende ou tem em depósito mercadoria em condições impróprias é de dois a cinco anos de detenção (ou multa), de acordo com a lei de relações de consumo, que tipifica crimes contra a ordem econômica. Atualmente, há um projeto de lei em discussão no Senado para que seja reduzida a pena para entre seis meses e dois anos.
José só ficou mais tranquilo quando um conhecido explicou que ele era réu primário, e que poderia responder em liberdade. Ele e o sócio pagaram a fiança, mas, o fantasma da possibilidade de prisão ainda os assombrou até janeiro de 2024, quando foram absolvidos pela Justiça, a pedido da Defensoria.
Irregularidade na fiscalização
Na apelação, a Defensoria destaca o fato de que não houve perícia no local da fiscalização para comprovar o modo de armazenamento. E que as condições no transporte das carnes e a forma como foram armazenadas pelos apreensores (em sacos plásticos e temperatura ambiente) colocavam em xeque o laudo pericial.
A fiscalização aconteceu em 10 de abril de 2013, já a perícia somente foi realizada em 13 de junho de 2013, mais de dois meses depois, e não retrataria como as carnes foram encontradas no momento em que foram levadas. Também não há sequer uma foto das condições que o material estava no momento da apreensão.
De acordo com a defensora pública que cuidou do caso, atual subdefensora-geral da Bahia, Soraia Ramos, a carne é um material altamente perecível, e, naturalmente, no momento da realização da perícia, já se encontrava alterado/degradado.
“Invalidada a perícia, a mera alegação de que estaria imprópria não seria suficiente para imputar o crime”, destaca a defensora pública Soraia Ramos.
Soraia também alega que não houve sequer uma fiscalização administrativa anteriormente no estabelecimento, e que já foram direto com apoio da polícia para prender os proprietários. Segundo ela, o ideal, caso fosse provado que havia material em condição inadequada, seria aplicar primeiro uma multa administrativa e determinar a mudança no padrão do local.
A apelação ainda critica o fato de que a apreensão de todo o produto da empresa levou os sócios à falência e que todo o processo penal foi fundamentado no depoimento de um dos policiais civis, que não tinha conhecimento técnico para apontar as irregularidades no frigorífico.
“Durante a instrução, foram ouvidas as testemunhas de acusação, que foram os policiais que participaram na operação. Nenhum fiscal do Procon, Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab) ou do Ministério da Agropecuária foi ouvido”, explica Soraia. Os demais policiais que também foram testemunha não adentraram o local, apenas fizeram a guarda e não souberam informar como era realizado o acondicionamento das carnes.
Leia aqui a segunda matéria da reportagem “E agora, José”, que conta como a fiscalização mudou a vida dos açougueiros.