COMUNICAÇÃO
Em julgamento simulado promovido pela Defensoria, júri popular decide que lei de cotas deve ser mantida
Por unanimidade, jurados do evento decidiram que política de cotas nas universidades federais deve seguir em curso. Em 2022, lei federal que a institui deve ser revisada pelo Congresso Nacional
Depois de escutar uma coleção de considerações da acusação e da defesa, o júri popular decidiu que a lei federal de cotas está cumprindo com suas funções e deve ser preservada em 2022. O marco legal assegurou reserva de vagas para acesso de estudantes pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às universidades e institutos de ensino superior federais.
O dramatúrgico julgamento dos resultados e necessidade de manutenção do espírito da lei de cotas ocorreu nesta terça-feira, 30, no espaço aberto do anfiteatro do Parque da Cidade em Salvador. De ordem figurada, a iniciativa ocorreu no âmbito das comemorações do novembro negro e marca a 8ª edição do projeto “Júri Simulado – Releitura do Direito na História” promovido pela Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA).
Formado por sete pessoas sorteadas entre dezenas de presentes que estavam ali para acompanhar o evento, o júri foi unânime em sua decisão no sentido da revalidação da lei federal nº 12.711/2012, que teve seus efeitos estabelecidos pelo período de 10 anos.
A partir daí, destacando temas como a distinção fundamental entre a discriminação odiosa e a positiva, rechaçando o mito da democracia racial no Brasil e questionando o projeto de nação delineado sem a política de cotas, a juíza, representada pela defensora pública Roberta Cunha, proferiu a sentença.
“Reconhecer os avanços das ações afirmativas é fazer justiça histórica, na exigência ética de justiça ao outro, que passou por diversas violações na sua dignidade. A lei de cotas não transforma a pirâmide social de forma isolada, mas é importante instrumento de política pública em prol do reconhecimento e igualdade material. O júri absolve a lei de cotas para que se cumpra um país mais justo e solidário, interracial nos espaços de poder, para que se reconheça o princípio material da igualdade como pressuposto da dignidade humana”, declarou Roberta Cunha.
A Acusação
Partindo de um conjunto de falas e raciocínios que permeiam o debate sobre o tema, a acusação, representada pela defensora pública Carina Góes, buscou enfatizar que as cotas raciais não atacavam as questões sociais que pretendiam superar e não alcançaram resultados. “Não é uma questão de cor de pele. É uma questão social. Essa é a reparação que se impõe. Além disso, o conceito de raça no Brasil é um conceito muito difícil de ser estabelecido”, argumentou Carina Góes em sua performance.
Destacando também a ideia de democracia racial que seria vivenciada no país, a Acusação chegou a afirmar que “não existe racismo no Brasil”. De acordo com a sustentação realizada por Carina Góes, não houve no Brasil leis que tenham estabelecido a discriminação racial entre brancos e pretos como nos EUA, o que lá teria fundamentado a adoção desta política, mas que aqui não se justificaria.
“Eu desafio que me tragam um só exemplo de que um negro recebeu um salário menor pelo simples fato de ser negro. Ou que deixou de se candidatar a uma vaga de emprego ou ser matriculado numa escola por conta de sua cor. Claro que não há, senhoras e senhores. O Brasil é um povo acolhedor. No Brasil, desde a abolição da escravatura, negros e brancos tem iguais oportunidades e convivem harmonicamente. Mas com a política de cotas, o discriminado agora é o branco. Trata-se de racismo reverso”, declarou a Acusação.
A Acusação buscou também desacreditar a política de cotas atacando o tópico dos critérios que levam alguém a ser considerado branco ou negro (pretos e pardos), tanto no caso da autoidentificação (feita pelo própria pessoa) como da heteroidentificação (feita por outros). Além disso, questionou as competências dos estudantes que ingressam nas universidades por cotas. “Será que as pessoas que foram selecionadas com o privilégio das cotas vão conseguir acompanhar o aprendizado?”, indagou.
A Defesa
Buscando remontar questões históricas para muito além dos 10 anos que a lei de cotas irá completar, a Defesa apontou que a história brasileira está marcada pela violência e pelo escravagismo contra índios e negros. Desempenhada pela defensora pública Jamara Saldanha, a Defesa destacou que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e que após esta ter ocorrido nenhuma política de inserção do povo negro foi realizada.
A Defesa apontou também que embora a legislação brasileira não tenha, pós-abolição da escravidão, estabelecido normas de segregação entre brancos e negros, como chegou a ocorrer nos EUA, a legislação aqui estabelecida foi realizada sempre no sentido de criminalizar e penalizar hábitos e costumes do povo negro, além de nunca oferecer acesso a vias estruturais de integração social.
“Nossa legislação foi construída por pessoas brancas, sem representatividade do povo negro. Basta ver a lei contra a capoeiragem e a lei da vadiagem que criminalizavam os negros então libertos que não tinham para onde ir além das ruas. Toda estrutura de nosso país foi montada para que as pessoas pretas não tivessem acesso a direitos básicos. Isso sob o argumento de que todos são iguais e, assim, não seria necessário fazer nada para incluir os negros pós-abolição. Disso deriva o que hoje enfrentamos”, apontou a Defesa.
Destacando a importância da política de cotas para formação de uma sociedade onde as pessoas negras podem viver seu processo de autoafirmação pessoal desde crianças, ao se reconhecer em qualquer espaço social, a Defesa apontou que na sociedade brasileira ainda há espaços profissionais e de poder onde os negros seguem sem representação substantiva.
“A criança negra quando vai ao médico e se depara com uma médica negra, por exemplo, isto já é uma transformação porque a gente se desenvolve se vendo no outro. A criança precisa saber que nenhum direito lhe será retirado. A lei de cotas é e segue importante para que possamos transformar e reparar este dano histórico [com as correspondentes dimensões psicossociais] causadas pelo escravagismo”, afirmou Jamara Saldanha.
Adentrando a argumentação no exemplo de sua situação real, Jamara Saldanha tomou sua própria condição como defensora pública da Bahia para apontar a necessidade das instituições adotarem políticas de reparação racial. “A Instituição a qual pertenço olhou para dentro de si e viu que a população preta era sub-representada, por isso institui sua política de cotas. A partir daí houve um aumento na representação de defensores(as) públicos negros(as)”, disse.
Encerramento
Ao fim do Júri Simulado, que contou também com a participação especial de Cássia Maciel, pró-reitora de ações afirmativas e assistência estudantil da Universidade Federal da Bahia como testemunha no julgamento simulado, e da servidora Juliana Vieira como oficial de Justiça, o defensor público geral Rafson Ximenes fez uma fala de encerramento.
Para um público de dezenas de cidadãos interessados no debate, e que reuniu também diversos defensores e defensoras e um grupo de estagiários da própria Defensoria, Rafson Ximenes abordou as iniciativas realizadas pela Instituição na luta contra o racismo. Entre elas, assinalou o recentemente lançado dicionário de expressões (anti)racistas, que foi distribuído no evento.
O defensor público geral também rebateu colunas de opinião recentemente divulgadas em jornais de ampla circulação nacional que depreciaram a publicação do dicionário da Defensoria como material de ideologia política. “Um evento como esse, um dicionário de expressões (anti)racistas, é sim uma afirmação política. Só que não uma afirmação política do campo do embate entre direita e esquerda. É uma afirmação política que tem como oposto o racismo e sua defesa. Nós não temos medo de enfrentar discursos racistas e afirmar que nossa Defensoria é melhor hoje depois de ter implantado o sistema de cotas e depois de ter quatro ouvidoras externas originárias do movimento negro”, disse Rafson Ximenes.
É possível conferir todo o “Júri Simulado”, que teve transmissão ao vivo pelo canal do Youtube da Defensoria, aqui:
Leis de Cotas
A Lei de Cotas, lei federal nº 12.711, publicada em 29 de agosto de 2012, estipulou o prazo de 10 anos para revisão de sua efetividade. Com um Congresso e um Governo muito mais conservador que quando a Lei foi sancionada, diversos movimentos sociais e setores da sociedade temem que as políticas de cotas estejam em xeque e têm feito pressão para a sua renovação.
Além da lei de 2012 que dá acesso às universidades, há também a Lei 12.990, de 2014, que garante reserva de vagas em concursos públicos federais, prevendo 20% de cotas para pessoas negras. Com a revisão também estipulada em 10 anos, a política deverá ser avaliada até 2024. No Congresso Nacional, tramitam propostas que sugerem adiamento da reavaliação das cotas para 2042, ou, que, até persistirem as desigualdades raciais, haja reavaliação a cada 10 anos e não apenas um única vez.
A Defensoria Pública da Bahia instituiu a reserva de vagas para a população negra em seus concursos públicos em 2016 (30%), tendo como base o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia e, posteriormente, para a população indígena (2%,), com a publicação da Lei Complementar estadual nº 46 de 2018. O tema das cotas raciais vem sendo amplamente discutido no âmbito do sistema de justiça, levando em conta os de direitos sociais reparatórios e a vedação do retrocesso.
De acordo com o defensor geral, Rafson Ximenes, o Estatuto da Igualdade Racial da Bahia se aproxima de completar 10 anos (em 2024), momento onde também a medida será reavaliação no Estado. Mas faz uma ressalva positiva quanto as cotas na Defensoria: “a nossa política de cotas tem previsão de duração pelo menos até 2028”.
O Júri Simulado
No Júri Simulado – Releitura do Direito na História, os defensores públicos representam o tripé da Justiça (defesa, juiz e acusação) e, quando se tratam de personalidades históricas, atores são convidados a assumir o papel do réu.
O objetivo é resgatar episódios que estruturaram o racismo e a invisibilidade das tradições e lutas de segmentos sociais, como da população negra e indígena. Lançado em novembro de 2016, o projeto já julgou figuras simbólicas e relevantes para a história da Bahia e do Brasil. Entre eles, Luíza Mahin, Zumbi, Índio Caboclo Marcelino, Lei Áurea, Cuíca de Santo Amaro, Marighella e Lucas da Feira.
Organizado pela Escola Superior da Defensoria da Bahia (Esdep), o evento é sempre gratuito e tem como público-alvo estudantes do ensino fundamental, médio e superior; além de estagiários(as) da Defensoria da Bahia; defensoras e defensores públicos, integrantes de carreira jurídica; estudantes e professores de áreas das Ciências Humanas.