COMUNICAÇÃO

ENCHENTE – Mutirão da Defensoria alcança 1.211 atendimentos e quantifica danos que moradores e comerciantes sofreram em Jequié

06/02/2023 18:40 | Por Ingrid Carmo DRT/BA 2499

Instituição vai pedir ingresso como custos vulnerabilis em Ação Civil Pública ajuizada pelo Estado e juntará todas as provas coletadas

“Parecia uma cena de terror: aquela água vindo, com toda força, do rio, do esgoto, de tudo quanto é lugar, trazendo peixe, cobra e rato e, quanto mais ela subia, mais os vizinhos gritavam por socorro e tentavam sair de dentro das casas, tendo que deixar tudo para trás”.

Com os olhos cheios de lágrimas e relatando o seu desespero ao ver a água subindo cada vez mais e chegando à sua cintura, a dona de casa Aline Xavier Miranda, 38 anos, lembra que foi passar o Natal na casa da mãe quando, de repente, sentiu um aperto no peito e deu vontade de voltar para casa. Sua intuição estava certa: minutos após voltar, o que ela e ninguém esperava, já que não estava chovendo, era que uma enchente atingiria Jequié em pleno dia 25 de dezembro de 2022.

Os danos sofridos por Aline e cada um dos moradores e comerciantes da cidade foram quantificados durante o mutirão realizado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, que, nos últimos dias 31 de janeiro, 1º e 2 de fevereiro, alcançou 1.211 atendimentos e coletou milhares de fotografias e notas fiscais que servirão como prova.

Para atender, de uma só vez, todas estas pessoas que ficaram vulnerabilizadas após a enchente, a 12ª Regional da Defensoria, que tem sede em Jequié, montou uma verdadeira força-tarefa e pediu o reforço da Unidade Móvel de Atendimento – UMA que veio de Salvador e, ao chegar, percorreu parte do rastro de destruição que ainda pode ser visto pela cidade. “Tudo virou entulho. Era tanta água que saí de casa nadando e fui resgatada em um barco”, lembrou a trabalhadora doméstica Rebeca Cardoso de Jesus, 27 anos, que foi a primeira da fila no mutirão.

O espaço escolhido para a realização do mutirão foi o ginásio do Complexo Poliesportivo Educacional Anibal Brito que, na época da enchente, foi utilizado como arrecadação de donativos, e, agora, virou um verdadeiro espaço de assistência jurídica integral e gratuita. “Para dar conta da demanda, acolher e ouvir os relatos de cada morador de forma individualizada, dividimos em três estações de atendimento – triagem, aplicação do questionário e digitalização dos documentos e das provas –  e, além dos defensores públicos, servidores e estagiários que atuam em Jequié, pedimos reforço de Salvador, Ipiaú e Amargosa”, contabilizou a coordenadora da 12ª Regional, Yana de Araújo Melo.

A força-tarefa também contou com a participação da Defensoria Pública da União – DPU, que orientou os moradores dos imóveis que fazem parte do programa Minha Casa, Minha Vida e também sobre a liberação do saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS por motivo de calamidade, da Defesa Civil de Jequié e do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS.

Embaixo d´agua

“A água chegou nas ‘carreiras’, foi tudo muito rápido. Se eu entrasse na barraca para tirar alguma coisa, não ia sair viva. Perdi minha guia [as mercadorias] toda”, lembrou a comerciante Maria da Glória Santos, 47 anos, que tem mais de 50 fotos e vídeos gravados no celular e servirão como prova de que o Centro de Abastecimento Vicente Grilo – CEAVIG também ficou embaixo d’água.

Enquanto a dona do Tempero Baiano da Glória e muitos comerciantes perderam o ganha-pão, muitos moradores perderam móveis e eletrodomésticos. “Perdi sofá, geladeira, freezer, mesa, armário, balcão, fogão e o berço do meu filho”, enumerou a dona de casa Michele de Souza Santos, 29 anos, que não pensou duas vezes ao sair de casa carregando os três filhos, de 4 meses, 3 anos e 7 anos, e com a água já na cintura. “E eu que tinha acabado de comprar meu sofá? Além dele, perdi tudo que tinha na sala, na cozinha e no banheiro”, lamentou a diarista Luana Fraga da Silva, 31 anos.

Teve também quem sofreu um dano maior ainda, perdeu a casa inteira e está tendo que viver em meio às rachaduras. “Era água para mais de metro de altura dentro de casa e que veio pela ‘maleta’: da frente, do fundo, de todos os lados. Perdi tudo, até o botijão de gás a água levou, e estou vivendo pela força dos amigos na única parte que sobrou inteira no fundo”, revelou o catador de materiais recicláveis Renato Santos, 62 anos, enquanto mostrava a foto da casa quase desabando. Durante o atendimento, ele foi encaminhado para a área onde estava o CRAS para receber o aluguel social.

O pedreiro Florisvaldo Silva Santos, 64 anos, estava na rua e quando tentou entrar na casa só conseguiu retirar o que estava ao alcance de suas mãos. “Só deu tempo de pegar meus documentos e o notebook. Quando olhei para trás, já com a água batendo na ‘caixa dos peitos’, vi estante, guarda-roupa, tanquinho de lavar roupa, geladeira, fogão, cama, colchão, liquidificador, panelas e minhas roupas boiando na água”, contou o pedreiro, que estava tão empolgado com o Natal que comprou roupa e tênis novos para usar, justamente, no dia 25. “Natal? Até hoje, não sabemos o sabor da ceia”, acrescentou a dona de casa Aline Miranda, lembrando que muitas geladeiras estavam cheias dos alimentos comprados para a ceia de Natal.

Custos vulnerabilis

De acordo com os defensores públicos Ethiene Vanila de Souza Wenceslau, Bibiana Gava Toscano de Oliveira e Gabriel Salgado Lacerda Medeiros, que atuam em Jequié e estão à frente do caso, agora, com base em todos estes relatos, provas e o rol de testemunhas, a Defensoria vai pedir o ingresso como custos vulnerabilis (que, em português, significa guardiã dos vulneráveis) na Ação Civil Pública – ACP ajuizada pelo Estado da Bahia em face à Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – CHESF pela vazão da Barragem da Pedra. “Prenderam a água e, quando soltaram, foi de uma vez. Se tivessem nos avisado com antecedência dava tempo de prevenir”, sugeriu o eletricista José Lima de Novaes Santos, 66 anos.

A feirante Anísia Santana Gomes também concordou sobre a falta de controle na vazão da água. “Se tinha aquela água toda, era para soltar aos poucos. Só lembro da ligação que recebi: corre aqui no mercado [o CEAVIG] que a água vai invadir. Invadiu e levou tudo”, recordou, durante o atendimento, a feirante Anísia Santana Gomes, 61 anos, que viu seus sacos de farinha, biscoito, tapioca, beiju, rapadura, feijão, açúcar e goma sendo levados pela água.

Além da coordenadora da 12ª Regional e dos defensores(as) que atuam em Jequié, o mutirão contou com a participação das defensoras Janaína Araújo, Maíra Miranda Fattorelli, Maria Carmen Albuquerque Novaes e Scheilla Daniela Almeida Nascimento, dos defensores José Carlos Teixeira e Luiz Carlos Azevedo dos Santos, e dos(as) servidores(as) e estagiários(as) de Jequié, Ipiaú, Salvador e Amargosa.

“O que vimos aqui, nestes três dias intensos e de muito trabalho, foi muito choro e sofrimento pela perda dos bens, das casas e das fontes de renda. Estas pessoas precisam ser indenizadas e ressarcidas o mais rápido possível para que possam recomeçar. A nossa atuação em defesa deste direito delas não vai parar e esperamos, muito em breve, trazer respostas concretas. Que os responsáveis por esta, que considero uma tragédia, possam assumir e reparar todos os danos causados, sejam eles materiais e também psicológicos”, garantiu a coordenadora Yana Araújo, que é natural de Jequié e viu todos os estragos causados pela enchente de perto.