COMUNICAÇÃO
ENTREVISTA: Defensor Daniel Nicory integrará Subcomissão de Crimes e Penas do CCJ
ENTREVISTA:
Um grupo de deputados irá analisar a toda a legislação penal em vigor no Brasil. O objetivo é propor uma nova organização e uniformização das leis que tratam de penas e crimes. No último dia 10 de agosto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos deputados instalou, em Brasília, a Subcomissão Especial de Crimes e Penas para propor uma nova organização e uniformização das leis que tratam de penas e crimes no país.
A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, responsável pela política legislativa na área penal no Poder Executivo, irá acompanhar e contribuir com o trabalho. A subcomissão terá o prazo de 60 dias, prorrogável por igual período, para concluir o trabalho. Para isso, irá promover debates com representantes dos Três Poderes e especialistas em direito penal. Para representar a Bahia, o defensor público da Bahia Daniel Nicoury integrará a Subcomissão, que fala sobre o assunto.
Organizar a legislação penal no País. Com este objetivo principal, quais desafios o Sr. vê pela frente, atuando nesta Subcomissão Especial de Crimes e Penas?
O maior desafio está na obtenção de um amplo consenso político para essa organização. A proposta da Subcomissão parte da constatação da inconsistência na cominação das penas, quando comparamos a repressão aos crimes contra o patrimônio à repressão aos crimes contra a pessoa, e essa desproporcionalidade não é casual, ela é resultado de nosso histórico de patrimonialismo e de punição severa às condutas ilícitas das classes pobres, comparada a uma notável benevolência com os crimes dos ricos.
Assim, por exemplo, o furto qualificado (quando envolve rompimento de obstáculo, destreza, escalda, etc.), que é um delito típico das classes pobres, tem pena de 2 a 8 anos de reclusão, a mesma destinada à lesão corporal gravíssima, que é mais "democrática", praticada por todas as classes e, com alguma frequência, por jovens de classe média. Assim, quem quebra o vidro de um automóvel para roubar o aparelho de som tem a mesma punição de quem agride gravemente uma pessoa, provocando mutilação, cegueira ou risco de morte.
Se, nesse aspecto, já há grande concordância quanto à excessiva severidade da punição do furto, e a benevolência da punição da lesão, em muitos outros casos o consenso é mais difícil.
2. O cenário de superlotação carcerária pode ser mudado com esta nova organização? De que forma esta questão será trabalhada nesta subcomissão?
O cenário da superlotação não mudará apenas com uma reforma da legislação penal. O melhor exemplo disso é que as muitas recentes reformas da legislação processual penal (começando em 2008 e chegando à recentíssima lei das medidas cautelares, em 2011) não produziram o efeito desejado no esvaziamento dos cárceres.
Para mudar esse cenário, além da reforma nas leis, é preciso "reformar" a mentalidade dos juristas em geral, e não só dos juízes, mas, é claro, especialmente deles, fortalecendo o sistema de cumprimento de penas e medidas alternativas.
3. À luz da defesa e no atual contexto jurídico do país, como o Sr. avalia que o Sistema prisional brasileiro deve ser pensado de modo a combater não somente impunidades, como também excessos e arbitrariedades?
O sistema penal (e não só o prisional) é uma máquina de distribuição de ônus e riscos, que devem ser suportados pela sociedade e pelos indivíduos selecionados por esse sistema como investigados/acusados/réus/sentenciados.
Quando o trabalho (da investigação policial, à instrução criminal à custódia de presos em cadeias e presídios) é mal feito, resta saber quem deve suportar esse ônus. Normalmente, mesmo antes do julgamento, é o réu, e não a sociedade, quem suporta o ônus, sobretudo quando está preso. Assim, ele é processado e condenado sem provas suficientemente fortes, porque essa é a prática, e é colocado em estabelecimentos superlotados e insalubres.
Usando os termos da própria pergunta, eu diria que, quando a sociedade suporta o ônus do trabalho mal feito, temos "impunidades" e, quando é o réu quem o suporta, temos "arbitrariedades". O primeiro passo, utópico, mas, nem por isso menos óbvio ou urgente, é fazer correta e decentemente o trabalho atribuído a cada um: ao policial, o de investigar e de vigiar, ao Ministério Público, de acusar, à Defesa, pública ou privada, de defender, e ao Poder Judiciário, de julgar.
Não sendo possível conseguir, com perfeição, esse cenário, é preciso evitar impor ao réu a assunção do risco do trabalho mal feito, pura e simplesmente porque ele não pediu para ser preso, e sim a sociedade pediu e pede para prendê-lo. Quando uma injustiça num processo criminal, contra um inocente, se verifica, logo se levantam vozes indignadas, mas frequentemente essas mesmas vozes, antes de o caso se resolver, também clamavam por uma punição apressada e precipitada. Nem mesmo os indivíduos mais ricos e poderosos estão a salvo de acusações injustas, como acabou de ficar claro no caso do ex-diretor do FMI e ex-candidato à presidência da França Dominique Strauss-Kahn, que, depois de passar dois meses com sua liberdade restringida (primeiro, encarcerado, em seguida, em prisão domiciliar e, depois, proibido de sair dos Estados Unidos), teve todas as acusações retiradas e o processo por violência sexual arquivado por falta de provas.
4. Como se dará o trabalho desta comissão nestes 60 dias de prazo?
Além de participar das reuniões e eventos de alcance geral, eu fui designado como um dos subrelatores do Grupo de Trabalho sobre Drogas, Armas e Crimes Contra a Paz Pública. Na verdade, provavelmente esse prazo será prorrogado, dada a magnitude dos trabalhos.
5. Qual sua expectativa quanto ao anteprojeto de Lei que deverá resultar desta subcomissão?
Sei que muitos outros grandes projetos e anteprojetos nunca foram aprovados, e por isso estou ciente do risco que o trabalho, em nossa comissão, também corre, se não for aceito pelos membros do Poder Legislativo. Por isso, minha maior expectativa é que o trabalho da comissão possa refletir uma reforma humanitária na legislação penal, redutora de violências e de sofrimentos, que, ao mesmo tempo, seja aceita como expressão do consenso político atual e, portanto, aprovada.