COMUNICAÇÃO

Especializada realiza II Encontro com Entidades Negras e Cultos de Origem Africana

09/01/2014 20:44 | Por

A Especializada de Proteção aos Direitos Humanos, da Defensoria Pública da Bahia, realizou, na segunda-feira, 16, o "II Encontro da Defensoria Pública e Entidades Negras e Cultos de Origem Africana". Na pauta duas questões importantes: a questão da regularização fundiária dos terreiros e a imunidade tributária. O primeiro encontro aconteceu em agosto deste ano. O evento faz parte da política de aproximação da Instituição com os movimentos sociais.

a reunião, que aconteceu no auditório da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDEP), no Canela, teve a participação representantes dessas entidades, membros da SEPROMI e do vereador Sílvio Humberto (PSB). Além da subcoordenadora da Especializada, Bethânia Ferreira, integraram a mesa os defensores Maíra Calmon e Alex Raposo, do Núcleo de Regularização Fundiária, e os defensores Marcos Fonseca e Walmary Dias Pimentel, que fazem parte da Especializada.

Inicialmente, Bethânia Ferreira fez um breve relato da participação da Defensoria no Fórum Mundial de Direitos Humanos, ocorrido entre os dias 10 e 13 deste mês, em Brasília. O evento acontece na mesma data em que se comemoram os 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Segundo a defensora, dentre as várias atividades com a participação dos defensores baianos, a mesa-redonda "A atuação da Defensoria Pública na Defesa das Religiões de Matriz Africana" teve uma boa receptividade. Para Bethânia, o tema mobilizou a atenção dos presentes e os debates foram extremamente positivos.

"Vemos que esses problemas que enfrentamos aqui não são específicos da Bahia. Neste encontro pudemos conhecer a realidade de outros estados onde há, também, intolerância religiosa, discriminação e perseguição às religiões de matriz africana. Este tema tem mobilizado muita atenção, principalmente daqueles setores da sociedade que estão comprometidos com a defesa intransigente dos direitos humanos", disse a subcoordenadora.

Na sequência, a defensora apresentou as duas questões da pauta. A primeira está ligada à regularização fundiária dos espaços onde são realizados os cultos. A segunda refere-se à questão da imunidade tributária. No caso, o não pagamento pelos terreiros de IPTU à prefeitura, já que o artigo 150, inciso VI, alínea b, garante imunidade tributária aos templos religiosos de qualquer culto.

Interpretações - No entanto, o problema parece ser mais bem mais complexo, principalmente pelo fato de o Código Tributário e de Rendas do Município de Salvador estabelecer uma serie de requisitos que inviabilizam o direito previsto em lei. Trata-se do parágrafo 6º, do artigo 58, da referida legislação tributária. O texto diz que "A declaração endereçada à Secretaria Municipal de Fazenda (SEFAZ) de associação para fins religiosos de que desenvolve sua atividade na unidade imobiliária por ela identificada, por meio de inscrição no Cadastro Imobiliário do Município, desde que registrada no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), é suficiente para gozo da imunidade do IPTU relativamente ao bem onde desenvolve seu objeto social, sem prejuízo da Administração Fazendária promover a devida fiscalização e, eventualmente, ulterior lançamento do tributo acaso sejam verificadas quaisquer irregularidades".

O problema central para que o processo se desenvolva satisfatoriamente está na dificuldade de os terreiros têm em atender às atuais exigências da prefeitura. Diferentemente de outras manifestações religiosas, o espaço do terreiro é celebrado de forma muito peculiar. Assim, o terreiro torna-se o espaço sagrado porque é lugar em que vão se desenvolver todos os ritos de cada culto.

De um lado, a SEFAZ não admite qualquer possibilidade de contemplação da demanda, visto que a exigência da lei municipal impõe a organização como associação e a inscrição no CNPJ, para que os terreiros obtenham a imunidade tributária. Do outro, o argumento de que a legislação municipal fere os princípios estabelecidos na Constituição, além de ir de encontro ao Código Tributário Nacional, que não coloca tais exigências em seu texto.

A imunidade prevista aos templos de qualquer culto é de eficácia plena, incondicionada, ou seja, não depende do preenchimento de requisitos legais, pois a Constituição não os criou ou delegou competência de imputá-los a norma infraconstitucional, como é o caso da alínea "c" do mesmo inciso. Neste aspecto a Administração Pública não poderia criar requisitos para a concessão do direito, sob pena de obstaculizar o exercício pleno de direito fundamental concedido ao cidadão, e, assim, ofendendo o princípio da legalidade e o da reserva legal.

Questão fundiária - Para dar conta da complexa tarefa de regularização funciária dos terreiros de Salvador, o Núcleo de Regularização Fundiária da Especializada de Direitos Humanos dividiu a cidade em 12 regiões e vai, a partir do ano que vem, começar um mapeamento pela 1ª Região, que abrange os mais de 200 terreiros existentes em Brotas. O trabalho contará com uma equipe de técnicos, que dará o suporte necessário para a realização do levantamento da situação de cada área.

Obviamente que este não será um trabalho fácil e rápido, já que demandará uma equipe de técnicos para inventariar cada área de forma detalhada, a fim de subsidiar as futuras ações da Defensoria. Dependendo de cada situação poderão ser aplicados instrumentos jurídicos específicos, como o direito real de uso, desapropriação para fim social, usucapião, além da perspectiva de tombamento dos terreiros mais tradicionais.

Para a defensora Maíra Calmon, há casos de terreiros em Salvador que vêm sofrendo uma verdadeira perseguição dos órgãos públicos. Ela citou um caso recente em que um terreiro localizado no Abaeté recebeu uma notificação de que deveria deixar o local por se tratar de uma Área de Preservação Ambiental (APA). O mais estranho é que os outros imóveis da mesma área não receberam nenhuma notificação.

Para o vereador Sílvio Humberto, a questão das religiões de matriz africana extrapola a garantia da imunidade tributária dos templos. "Há, hoje, um claro racismo institucional. Vamos encaminhar as propostas da Defensoria para a Comissão de Reparação da Câmara de Vereadores. Mas, ao mesmo tempo articular o fortalecimento desse movimento para que enfrentemos a intolerância religiosa à altura de seus desafios", afirmou.

Humberto foi o único vereador a participar do encontro. Ele parabenizou a Defensoria Pública pela iniciativa e, como fiscal concursado da SEFAZ municipal, disse que poderia dar uma contribuição ao debate, já que discute a questão há muito tempo. O vereador também informou que logo a população de Salvador terá o seu Estatuto da Igualdade Racial, em debate na Câmara Municipal.

A representante do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN), Vilma Reis, denunciou a violação permanente dos direitos das comunidades dos terreiros pelos representantes da justiça e da prefeitura. "Nosso interesse aqui é que numa próxima rodada possamos mobilizar o pessoal dos terreiros e as associações para mudar este estado de coisas", afirmou.

Num tom mais grave, Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-ameríndia (AFA), relatou diversos fatos relacionados à Truculência das ações da Polícia Militar. Citou a perseguição que alguns pais de santo está sofrendo na Bahia, principalmente em regiões mais distantes da capital. "Não podemos esquecer o que os policiais fizeram em Ilhéus com nossa conhecida mãe de santo, colocando sentada num formigueiro", disse.

Presente ao encontro, o tenente-coronel Jaime Ramalho, coordenador da Superintendência de Prevenção à Violência (SPREV) - órgão vinculado à Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), afirmou que era preciso se estabelecer uma articulação mais eficiente entre as entidades e os canais institucionais, no sentido de informar antes à PM sobre o contexto onde se dariam as ações de reintegração de posse ou ações de outra natureza, geralmente causadoras dos atos de violência.

Outros representantes de entidades de cultos africanos também se manifestaram, mostrando sua indignação com os fatos ali relatados. De uma forma geral, o uso da violência, a perseguição e a intolerância são componentes de uma escalada que se manifesta com mais visibilidade em Salvador.

Precisamos estar atentos porque eles não vão mexer agora com os grandes e mais tradicionais terreiros de Salvador. Eles atacam os pequenos os indefesos, desconhecidos. Assim, não encontram resistência. Acho, inclusive, que esses grandes terreiros deveriam sair em defesa dos pequenos, porque amanhã podem ser eles também, alertou Sílvio Humberto.

Na conclusão dos trabalhos, as propostas apresentadas pela Defensoria, de mudança no texto do§ 6º do art. 58 do código tributário municipal, sugerindo a inclusão do § 7º para tratar especificamente das religiões de matriz africana, via projeto de lei a ser apresentado na Câmara, e o trabalho a ser desenvolvido pelo Núcleo de Regularização Fundiária foram aprovadas e encampadas pelos representantes do movimento. Uma nova reunião foi marcada para meados de janeiro, tempo suficiente para que se ampliem as articulações de fortalecimento das entidades religiosas de matriz africana e a Defensoria Pública encaminhe os seus procedimentos e ações.