COMUNICAÇÃO
Furto por fome: Defensoria solicita extinção do processo penal de assistido que subtraiu quatro pacotes de carne seca do Extra em 2016
Hoje trabalhando, e arrependido do erro, José Antônio chora e declara que ainda paga um preço alto pelo momento de desespero
Um homem maduro, negro, 50 anos, desempregado e pai de três filhos, entra no Supercado Extra da av. Vasco da Gama (Salvador), carregando uma sacolinha com a marca de outra rede de lojas. Avalia alguns produtos nas prateleiras e esconde quatro pacotes de carne seca na sacola que levou.
Após passar próximo ao caixa, é detido pela segurança do supermercado e questionado sobre os produtos. O chefe de patrimônio do Extra chama policiais que faziam a ronda pelas imediações, denuncia a tentativa de furto, e é dada voz de prisão. O ano é 2016.
“Preso em flagrante, tendo como vítima a sociedade”, informa a nota de culpa emitida pela Delegacia de Polícia no mesmo dia – documento legal que deve ser entregue ao acusado informando a razão da prisão, os artigos penais infringidos e a autoridade policial que o conduziu.
A história de seu José Antônio* não termina tragicamente como a do emblemático caso do tio e sobrinho Yan e Bruno Barros, que furtaram carnes no Atakarejo e foram entregues à morte.
Mas o processo criminal que persiste por seis anos contra ele é uma dor ainda pulsante. Ele era réu primário, ou, no popular, ficha limpa.
“Me arrependo muito de ter me deixado levar a esse ponto. É lamentável. Tô pagando um preço por isso, já tive várias portas batidas na minha cara. Sou técnico formado, mas as portas não se abrem mais para mim”, desabafou José em entrevista à Defensoria Pública da Bahia – DPE/BA, que faz a sua defesa criminal.
Pegou as carnes porque precisava comer. É o que consta no depoimento de José no inquérito aberto pela Polícia Civil no mesmo dia do registro da ocorrência policial. No dia posterior, na audiência de custódia, o Poder Judiciário concedeu liberdade provisória, reconhecendo a falta de antecedentes criminais e que nada sugeria risco à ordem pública.
Em nova audiência, em 2018, acompanhada pela Defensoria, ficou decidido que o processo de José seria encerrado após uma condicional de dois anos. Ele precisaria pagar uma multa reparatória de R$ 400 reais em prol da sociedade, em quatro parcelas de R$ 100, além de estar proibido de ausentar-se de Salvador sem autorização judicial por mais de sete dias.
Também precisaria comparecer obrigatoriamente na Justiça todos os meses para informar e justificar suas atividades. É uma praxe no sistema penal, mas também uma dor para ele, que se entristece quando alguém toca no assunto e tem muita dificuldade de falar sobre.
“Ter que ir lá naquele Fórum todo mês para assinar um papel, pra mim é difícil. Agora mesmo, só por lembrar disso aí (o furto), já é um sofrimento. Foi uma parte difícil da minha vida. Se eu pudesse viajar no tempo, se fosse um livro, e eu pudesse desaparecer com essa página… Queria que nunca tivesse acontecido”, relata José.
Nova denúncia
No entanto, seu José só conseguiu pagar duas parcelas da multa de R$ 400 reais combinada com a Justiça. E acabou reincidindo em outro furto, em 2018. Motivos? Estava em débito de aluguel, tendo brigas constantes com o proprietário da casa, e sendo parcialmente sustentado pela mãe idosa.
Subtraiu R$ 50 reais e um celular de um servidor de uma empresa, que mexia no alto de uma torre, e havia deixado a pochete de “vacilo” na base. Novamente réu confesso, informou à polícia que o celular e o dinheiro foram entregues no mesmo dia ao proprietário da casa, que também foi interrogado. Os itens foram devolvidos pela polícia ao dono.
Por causa do descumprimento, o Ministério Público da Bahia solicitou em 2021 que fosse retomado o processo que José respondia pelo furto no Extra. A Defensoria Pública da Bahia, por meio da defensora Soraia Ramos, que atua na área penal, discordou que mais uma vez a máquina judiciária fosse movida para um processo que considera insignificante.
“A gente deve mesmo usar a polícia, o judiciário, promotores, defensores e juízes para proteger patrimônio de grandes conglomerados de varejo e atacado? Deixa-se de dar atenção a crimes graves como estupro e homicídio para julgar crimes insignificantes como esse”, questionou Soraia.
Para ela, é desproporcional os gastos do estado e as custas judiciais dos processos em relação ao pequeno prejuízo causado por pessoas pobres a esses grandes supermercados quando furtam comida para sobreviver.
“Não estamos incentivando ninguém a cometer crimes, mas não é razoável usar a máquina judiciária para processar pessoas por tentativa de furto de itens que já foram devolvidos. É muito gasto e tem muita coisa mais importante para o sistema de justiça dar atenção”, destaca a defensora.
Já o defensor Pedro Casali, coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da Defensoria, reafirma que esse tipo de furto em supermercados acontece não por maldade da pessoa, mas por necessidade. E que esse tipo de delito não tem sido considerado como crime pelo entendimento jurisprudencial do STF e do STJ.
Extinção do processo
Após a defesa da DPE/BA, o próprio Ministério Público concordou com a extinção do processo e a Defensoria agora aguarda uma decisão positiva do juiz para que se encerre a aflição de seu José, que dura desde 2016.
Em pranto, ao desabafar na entrevista com a assessoria de comunicação da Defensoria, seu José declara:
“Nada justifica o meu erro. Errei, não pensei, não me apoio, não farei nunca mais. E não quero que meus filhos saibam de nada disso. A imagem que passo para eles, a criação que eu dou a eles é bem diferente desse momento de tropeço na vida”, comentou.
“Comecei a trabalhar cedo, sempre trabalhei, sempre defendi o meu pão. Infelizmente aconteceu, Minha família ficou muito triste, causei constrangimento e dor. É uma vergonha, mas para mim é passado. E a cicatriz fica, até mesmo como lembrança positiva ou negativa para que não aconteça mais”, conta seu José em tom choroso.
Vítima: a sociedade?
“Esse é um enorme paradoxo do sistema penal. A sociedade é vítima de uma pessoa que furtou para sobreviver? Não será que é a própria estrutura social de desigualdade que vitima essas pessoas, negando oportunidades, educação e levando-as ao desespero?”, reflete a defensora pública Fabíola Pacheco, que também coordena a Especializada Criminal e de Execução Penal da DPE/BA.
Para ela, uma pessoa que assume os riscos de infringir a lei apenas para sanar a própria fome é consequência de um país cada dia mais faminto e pobre. Como não conseguem encontrar trabalho, o desespero faz com que muitas dessas pessoas “apostem” a sua liberdade, aventurando conseguir os itens de que precisam.
Outro paradoxo desse comportamento é que, se pegos em flagrante, a estigmatização da prisão acaba fechando ainda mais as portas.
“A passagem pelo cárcere é um evento crítico, dificulta o acesso ao trabalho, dificulta o acesso a estabelecimentos educacionais, porque existe uma discriminação estrutural com quem ingressa no sistema de justiça criminal. Então, se você acaba entrando num processo criminal por falta de oportunidades, a prisão agrava ainda mais essa realidade”, explica o defensor Pedro Casali.
Confira as outras matérias da série Furto por fome:
*José Antônio é um nome fictício, usado para preservar o anonimato do assistido da Defensoria