COMUNICAÇÃO

Lei Áurea é julgada em júri popular simulado organizado pela Defensoria Pública da Bahia

06/11/2018 16:17 | Por Lucas Fernandes (texto) DRT/BA 4922 / Humberto Filho (fotos)

O evento fez parte das atividades em comemoração ao “Novembro Negro”, mês marcado pelo combate ao racismo, valorização da cultura afrodescendente e garantia dos direitos das pessoas negras

Há 130 anos a escravidão fora abolida no Brasil e para estimular uma reflexão acerca dos impactos que os três séculos de exploração do povo negro causaram na sociedade brasileira a Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA realizou nesta terça-feira, 06, a quarta edição do Júri Simulado – Releitura do Direito na História.

O evento aconteceu no Teatro/Auditório do Irdeb, na Federação, e contou com a presença do defensor público geral do Estado da Bahia, Clériston Cavalcante de Macêdo, de membros da Administração Superior da Defensoria, autoridades, estudantes, estagiários e professores de áreas como Direito, História e Sociologia, de movimentos sociais, além da imprensa.

O julgamento popular dessa vez teve no banco de réus a Lei Áurea (que com apenas dois artigos extinguiu a escravatura em 13 de maio de 1888). Por quatro votos a três, os sete jurados sorteados na plateia consideraram o diploma legal inocente, tanto pela libertação simplista quanto pelo legado de exclusão, preconceito e miséria dos descendentes dos milhões de africanos traficados como escravos para o Brasil – além dos milhões nascidos escravos em solo brasileiro.

Para o subdefensor geral da DPE/BA, Rafson Saraiva Ximenes (um dos autores da série de júris simulados, que desempenhou o papel de juiz no evento), o júri é um julgamento diferente de qualquer outro, porque não há como saber com certeza qual motivo que levou cada jurado a tomar uma decisão. “Ele não é obrigado a fundamentar, ele apenas decide”, comentou.

Conforme Rafson Ximenes, a defesa usou uma estratégia inteligente para mostrar que a responsabilidade não foi da lei, mas da sociedade como um todo, principalmente a parcela representada pelo homem branco. “O resultado ser 4 a 3 demonstra o quanto os argumentos foram relevantes para cada ponto de vista, e o trabalho da defesa e da acusação foram muito bem feitos, provocando uma divisão muito equilibrada de posicionamentos”, avaliou o subdefensor-geral.

“Esse evento pra mim funciona muito bem como educação porque traz a sociedade, o estudante, os jovens e os adultos a para estudar história, estudar Direito de uma maneira lúdica, leve, sedutora e divertida”, finalizou Rafson.

Já a defensora pública Eva dos Santos Rodrigues, que coordena a Especializada de Proteção aos Direitos Humanos e é coautora do projeto Júri Simulado, reforçou o agradecimento ao Irdeb pela cessão do Teatro e por acolher e apoiar mais uma vez a atividade educativa da Defensoria. “Nesse atual contexto, termos aliados certamente é muito importante para nós”, agradeceu Eva Rodrigues.

Após o evento, a socióloga, doutoranda em estudos étnicos e africanos na UFBA e ouvidora geral da DPE/BA, Vilma dos Santos Reis, deu uma palestra, analisando a marginalização da população negra, fruto do escravismo, e mostrando a trajetória de resistência no Brasil frente ao racismo e a desigualdade.

“Foram as mãos negras que tudo ergueram e que tudo erguem nesse país. Esse ato aqui, essa aula pública, é uma pequena introdução de que não sofremos de amnésia cultural, para lembrarmos quem somos e a grandeza do nosso povo”, discursou Vilma Reis.

O quarto Júri Simulado da Defensoria finalizou ao som da canção 14 de Maio, de Lazzo Matumbi. Em breve você poderá assistir ao júri simulado da Lei Áurea no canal do Youtube da Defensoria da Bahia.

Júri

Durante o julgamento o defensor público Maurício Garcia Saporito, que fez a sustentação em defesa da Lei Áurea, destacou que a culpa de não existir liberdade plena para a população negra não foi legislativa.

“Não é a Lei Áurea quem tem que ser culpada, ela cumpriu naquele momento o que tinha que fazer, quem tem que ser julgado aqui é o homem branco. Precisamos sair do fetichismo de achar que uma lei vai mudar o comportamento, tirar o sentimento racista, quando quem tem que mudar somos nós”, refletiu Maurício Saporito.

O defensor público lamentou o racismo, relembrou que o racismo só veio a se configurar como crime 100 anos após a abolição, em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, e conclamou a consciência pessoal do júri e da plateia para reverter o quadro, lutar e melhorar a cada dia a situação dos negros no país.

Já a acusação, interpretada pela defensora pública Flávia Apolônio Gomes, que atua nos juizados especiais, argumentou que o Brasil foi o último país a abolir a escravatura, por pressão externa relacionada aos interesses econômicos, principalmente da Inglaterra. Segundo ela, apesar da libertação, o poder continuou concentrado nas mãos de uma minoria branca e que muitos negros continuaram sob o jugo dos senhores de engenho, mantendo-se as relações senhoriais.

A argumentação de Flávia Apolônio baseou-se na ideia de que a promulgação de uma lei simples, sem previsão de inserção da população negra na sociedade e de criação de políticas de inclusão – moradia, educação, trabalho – provocaram uma desigualdade que persiste até hoje.

“A liberdade não é plena para a população negra, desrespeitada no dia a dia, no ambiente de trabalho, nas ruas ao serem abordados por policiais… Será que em 2018, passados 130 anos, podemos falar em liberdade efetiva e declarar que não existem outros tipos de escravidão no nosso país?”, deixou Flávia Apolônia a reflexão para o público.

Sentença

Trecho da sentença de absolvição proferida pelo juiz interpretado pelo subdefensor-geral, Rafson Ximenes, dizia:

“Liberdade é inadiável e, na política, às vezes, é preciso saber dar um passo atrás. Por esta razão, não se pode condenar penalmente os abolicionistas que julgaram ser aquela pobre e pequena lei o melhor que poderiam conseguir no momento. Mas isso não livra o Estado Brasileiro, autor da abolição mais tardia do mundo, da obrigação civil, que não é só uma pena, mas um dever ético: reparar os danos causados à população negra, implementando políticas afirmativas, para alcançar a igualdade material, promovendo discussões amplas sobre o racismo, sobre a discriminação, em todas as áreas e espaços de conhecimento, garantindo representatividade, assegurando o livre exercício das religiões de matrizes africanas, entre outras medidas”.

Para acessar à simbólica sentença por completo, clique aqui.

Lei Áurea

Confira a íntegra do texto da Lei Áurea abaixo:

Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888.

Declara extinta a escravidão no Brasil.

A princesa Imperial, Regente em Nome de Sua Majestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:

Art. 1º É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.

O Secretário de Estado dos Negócios d’Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de Sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.

67º 2005 da Independência e do Império.

Princesa Imperial Regente

Rodrigo A. da Silva.

Próximos julgamentos

Cuíca de Santo Amaro: Em 06 de dezembro de 2018 será julgado o trovador-repórter que levava ao povo, em forma de cordel, notícias inéditas – à época não divulgadas pelos jornais da capital baiana, dominados por grupos políticos – pelos seus versos audaciosos, que criticavam tanto os poderosos quanto pessoas comuns.

Carlos Mariguella: Em fevereiro de 2019, o político revolucionário baiano e fundador da Ação Libertadora Nacional será julgado pelos atos praticados durante o Regime Militar de 1964.

Em edições passadas a série de júris populares julgou a líder malê Luiza Mahin (em novembro de 2016); o guerreiro da resistência contra a escravidão, Zumbi dos Palmares (em novembro de 2017); e o índio Caboclo Marcelino, símbolo de defesa das terras da antiga aldeia de Olivença, no litoral sul de Ilhéus (em abril de 2018).