COMUNICAÇÃO

“Meu nome não é ex-detento. Meu nome é Carlos Eduardo”, diz participante em Roda de Conversa sobre igualdade racial

18/09/2019 17:02 | Por Tunísia Cores - DRT/BA 5496 | Fotos: Dedeco Macedo

Relatório da Defensoria apresentado durante o evento aponta que 98,8% dos custodiados são negros em Salvador.

Há dezesseis meses, Carlos Eduardo Souza Guimarães, 38 anos, foi reintegrado à sociedade após o período em que passou no Conjunto Penal de Feira de Santana. Desde então, a cada três meses precisa se apresentar à Justiça para cumprir procedimentos legais. Nesta terça-feira, 17, Carlos Eduardo participou da Roda de Conversa: Igualdade Racial e Acesso à Justiça promovida pela Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, na Sociedade Protetora dos Desvalidos, localizada no Centro Histórico de Salvador.

“Quero parabenizar a Defensoria por estar disponível para ajudar esses indivíduos. Isso é revolucionário. Quem quer saber de preso? Muitas vezes a própria família abandona o preso e o defensor público acaba representando a figura de um pai para a gente”, afirmou.

Criado sem a presença paterna, Carlos Eduardo é filho de uma mulher negra, dona de casa e empregada doméstica. Em sua fala, destaca que reconhece ainda mais a importância de dialogar sobre o tema com a sociedade e, principalmente, com a juventude.

“Infelizmente, devido à desigualdade social, à injustiça social, as pessoas negras e pobres vêm sendo penalizadas de forma abusiva. É por isso que eu me levanto e estou me manifestando no dia de hoje. Tenho um ano e quatro meses reintegrado à sociedade. Meu nome não é ex-detento. Meu nome é Carlos Eduardo. Estão tentando arrancar o meu nome, mas eu não permito”, desabafou.

Para a ouvidora-geral da DPE/BA, Sirlene Assis, o processo histórico iniciado com a escravidão impacta diretamente na realidade atual do Brasil, cujo desmonte de direitos e precarização das políticas públicas atingem principalmente os negros (pretos e pardos) no Brasil. “O racismo institucional é excludente, impede que parte da população acesse a Justiça, cujo olhar ainda é preconceituoso, conforme constatado no Relatório das Audiências de Custódia da Comarca de Salvador (Bahia). O documento é fundamental para discutir como está o debate racial e quem são os principais assistidos das audiências de custódia”, comentou.

O Relatório das Audiências de Custódia da Comarca de Salvador/Bahia, produzido pela DPE/BA com base em dados coletados entre os anos 2015 e 2018, foi apresentado durante a Roda de Conversa: Igualdade Racial e Acesso à Justiça. A análise das informações de 17.793 custodiados revela um padrão alarmante – grande parte dos assistidos são homens (94,2%), negros (98,8%), jovens (68,3%), com ensino fundamental incompleto (54,6%) e renda inferior a dois salários-mínimos (98,7%).

O cruzamento de dados entre a tomada de decisão e a autodeclaração racial também traz constatações reveladoras. A liberdade provisória é concedida com mais frequência entre os brancos (56,9%) do que entre os negros (51,6%), mas a prisão preventiva é decretada com maior frequência entre os negros (40,2%) do que entre os brancos (27,4%).

Roda de Conversa

Durante o evento, o defensor público Lucas Marques Resurreição comentou os dados do relatório, que levam à conclusão da existência do racismo estrutural, e pontuou a conexão umbilical entre a igualdade racial e o acesso à Justiça. “No clamor de termos uma sociedade mais igual, considerando o aspecto racial, nós temos que mudar essa realidade. A Defensoria Pública, assim como outras instituições e órgãos do sistema de justiça, tem que caminhar para uma sociedade mais justa”, afirmou.

Coordenadora da Especializada de Direitos Humanos, Eva Rodrigues representou o defensor público geral Rafson Saraiva Ximenes e deu boas-vindas aos participantes. “Espero que a gente consiga construir mais um capítulo rumo a uma sociedade mais livre, justa e igualitária. Que a gente consiga olhar para a nossa instituição sabendo que precisamos avançar especialmente nas demandas de racismo e igualdade racial”, afirmou.

Recém-criado na DPE/BA, o Grupo de Pesquisa Igualdade Racial também se fez presente por meio das defensoras públicas Vanessa Nunes, Clarissa Verena e Jamara Sampaio, e do defensor público Rafael Couto. “Enfrentamos um momento difícil no país, mas é um pedaço da nossa história, não é a totalidade. A abolição foi também um capítulo de uma luta, mas antes de acontecer nós criamos diversas iniciativas de liberdade. Precisamos ser protagonistas, fazer parcerias e alianças com pessoas que abriram as portas para nós”, afirmou Vanessa.

Diante da presença de muitos jovens e adolescentes, Clarissa Verena aproveitou para explicar um pouco mais sobre a instituição. “Nós estamos aqui para ajudar vocês, como instrumento de transformação. Eu me sinto muito honrada porque nós nascemos negros, mas também nos tornamos negros, e criamos esse grupo porque queremos reescrever a nossa história”.

Coordenadora do Núcleo Especializado de Diversidade e Igualdade Racial da Associação Nacional dos Defensores e Defensoras Públicos (ANADEP), Isadora Brandão destacou o papel das instituições públicas. “Temos um rol de demandas da população negra por acesso à Justiça. Então, talvez esse seja o momento de firmar um compromisso. Precisamos avançar na institucionalização, criar núcleos e estruturas para enfrentar essa realidade”.

O pensamento também é compartilhado pela ex-ouvidora da Defensoria, a socióloga e ativista Vilma Reis. Na ocasião, dialogou sobre representatividade, pluralismo e apresentou propostas que incluem a criação de campanhas junto aos magistrados, além do desenvolvimento de ações em conjunto com as polícias. “Sabemos que estamos diante de algo muito sério, que é como o racismo estrutura as relações entre quem está julgando e quem é julgado. É uma situação de violação e desumanização, e precisamos ter como horizonte o abolicionismo penal”.

Além da sociedade civil, também participaram do evento representantes da Ordem dos Advogados do Brasil/Bahia; do Movimento Negro Unificado; da União de Negros Pela Igualdade (Unegro); da Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora; da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras da Bahia (CTB); de terreiros de candomblé de Salvador e do Recôncavo Baiano; da Cipó Interativa; do Movimento Moradia; da Biblioteca Comunitária Zeferina Beirú; da Associação Luiza Mahin; do Conselho de Moradores da Cidade de Salvador, entre outras instituições e personalidades.