COMUNICAÇÃO
Mãe que denunciou execução de Pedro Henrique sofre com ataques judiciais de policiais militares
A Defensoria da Bahia dá assistência em cinco processos judiciais movidos por policiais contra a professora e escrivã de polícia Ana Cruz. Somados, os valores pedidos em indenizações chegam a R$ 70 mil reais
Uma investida judicial de policiais militares está sendo realizada contra a professora de português e escrivã da Polícia Civil, Ana Maria Cruz, 55, mãe do jovem Pedro Henrique, ativista de direitos humanos morto a tiros dentro da própria casa, em Tucano. O crime chocou a cidade do interior baiano, com pouco mais de 50 mil habitantes, e foi amplamente noticiado na imprensa, mas completa dois anos e seis meses sem resolução.
A Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA dá assistência à família da vítima e acompanha de perto o caso. Atualmente, pelo menos cinco processos movidos por quatro PM’s – todos assessorados pelo mesmo escritório de advocacia – pedem a prisão e o pagamento de indenizações contra Ana Maria (dona Ana). Somados, os valores indenizatórios chegam a R$ 70 mil reais. Os processos tramitam nas comarcas de Salvador, Tucano e Euclides da Cunha.
Além de sofrer com luto por um filho, a mãe ainda pena com uma prática que pode ser enquadrada como “lawfare“, termo utilizado para retratar o abuso do direito e o uso de estratégias judiciais ou a manipulação das leis como um instrumento de ‘guerra’, visando minar as forças do ‘inimigo’.
É que mesmo dois anos e meio após a morte do filho, assassinado aos 31 anos, dona Ana continua buscando respostas para o homicídio. E também tomou para si a missão dele de denunciar a violência policial contra a população da periferia. Com o lema Justiça ParaPedro Henrique, continua lutando para que a morte do filho não fique impune.
“Ele sempre dizia: ‘no dia que eles me matarem, eu não quero você chorando por aí, não’. Desde que aconteceu (o assassinato), é uma forma de honrar a memória e a luta dele”, declarou Dona Ana. O laudo pericial do departamento de polícia técnica indica que o assassinato de Pedro foi execução sumária e a família acredita que os responsáveis são policiais que atuam em Tucano. A única testemunha da morte – a companheira do filho – fez o reconhecimento dos três suspeitos em inquérito aberto pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. Eles estão sendo investigados.
“Dois anos pode parecer muito, mas para mim aconteceu ontem. Todo o meu sentimento da época que aconteceu (o assassinato) é vivo ainda hoje” – Dona Ana
Embora não haja Defensoria Pública da Bahia instalada na comarca de Tucano, a instituição começou a atuar na defesa de dona Ana após a professora ser intimada em Salvador para responder a processo no juizado criminal do bairro Itapuã. Ela é natural de Tucano, mas reside na capital há 37 anos.
De acordo com a defensora pública Valéria Teixeira – que dá assistência jurídica a ela e à testemunha – os processos foram aumentando ao longo do tempo. O próprio Pedro já havia sido processado por um PM, por difamação, devido às denúncias que fazia nas redes sociais.
“Vejo isso como uma intimidação, como a tentativa de cessar o direito de dona Ana de manifestar livremente o que pensa sobre a polícia. É uma forma de silenciamento. O homicídio de Pedro foi um ato covarde e agora a mãe dele está sendo submetida a uma violência psicológica e também a violência/assédio processual”, afirmou Valéria Teixeira.
Via crucis
Segundo a defensora pública, os processos contra dona Ana não respeitam a dor de quem perdeu um filho de forma brutal e violenta. Desde 2019 ela enfrenta esse martírio processual.
“A revolta de dona Ana, direcionada à polícia, não é perseguição e não tem intuito ofensivo. As críticas têm lastro em situações concretas vivenciadas por Pedro e na dor de uma mãe que perdeu seu filho, que, conforme narrou a única testemunha do fato, foi assassinado por agentes da polícia”, explicou Valéria Teixeira.
A testemunha dormia com ele quando foram abordados de madrugada, após ter a casa invadida pelos assassinos. Em depoimento à polícia, informou que foi dada voz de prisão ao “rasta” antes de atirarem – apelido que, conforme os familiares, somente a polícia usava nas abordagens policiais feitas ao ativista.
Nesse depoimento, a companheira de Pedro aponta ter reconhecido a voz e as características de dois dos três invasores, indicando serem PM’s que costumavam fazer abordagens violentas a Pedro e a ela no bairro – ele já os havia denunciado inúmeras vezes ao Ministério Público em Tucano. Ambos são alvo de investigação criminal e movem as ações contra dona Ana, junto com outros dois policiais.
Para a defensora, os autores dos processos utilizam com má-fé o direito constitucional que assegura indenização por dano material, moral ou à imagem, como uma forma de legitimar um ato de violência. Ela argumenta que esse ímpeto deveria ser usado para cobrar explicações sobre o inquérito, para que tudo seja esclarecido, não para vitimar ainda mais uma mãe em luto.
“Essa conduta de ajuizamento de diversas ações é uma forma de reduzir a pressão e fazer com que o caso caia no esquecimento, pois a postura de dona Ana, de persistir lutando e cobrando das autoridades o desfecho do inquérito, deixa claro que as pessoas, a família e as instituições não vão se calar”, pontuou. De acordo com Valéria, além da Defensoria Pública, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia e os próprios movimentos sociais também estão atentos a esse caso.
Em setembro de 2019, a Defensoria oficiou o Ministério Público do Estado da Bahia – MPBA relatando o assédio processual sofrido por Ana, mas não teve retorno. O MP solicitou novas diligências à Polícia Civil referentes à investigação criminal do caso, mas correm em sigilo.
Coragem de filho, coragem de mãe
Além de passar por todo o turbilhão de emoções e sofrimentos de quem teve o filho brutalmente assassinado, dona Ana enfrenta a investida judicial dos policiais sem abaixar a cabeça.
No Facebook, ela também mantém viva a memória de Pedro. Administra a conta que pertencia ao filho e compartilha as lembranças dos ideais que ele divulgava diariamente antes da tragédia – sempre de alto engajamento político e sensibilidade com as artes e a música.
“Eu sempre fui engajada na luta de Pedro, mesmo de longe (Salvador), eu ajudava como podia, dava todo o respaldo. Sempre estava nos eventos da Caminhada da Paz, a gente fazia as camisas, trocava por alimentos, arrecadava, distribuía as cestas básicas” , conta. Ao ser perguntada se não tem medo de algum tipo de represália, ela responde sim, mas que jamais vai deixá-lo se sobrepor.
“Nunca senti meu medo maior que a minha coragem. Medo todo mundo tem, mas precisamos lutar, porque se recuarmos sofreremos duas violências”, declara.
Enquanto isso, segue firme em mostrar o grande homem que era o filho. Após o trágico fim, algumas pessoas começaram a levantar a ideia de que Pedro era envolvido, vítima da guerra do tráfico. Em entrevista ao jornal baiano Correio, um dos policiais que move processo criminal contra dona Ana sinalizou que a mídia estava sendo benevolente ao colocar Pedro Henrique como ativista social: “Um cara que era usuário de drogas. Se essa moda pegar, não vai ter mais nem usuário, nem traficante. Vai ser tudo ativista agora”.
Para dona Ana, a história de Pedro fala por si. E não é difícil mostrar o humanista que o filho era, pois ainda estão vivos na memória das pessoas os atos públicos de Pedro em defesa do povo que mora nas periferias e os esforços para que os alimentos coletados nas Caminhadas da Paz chegassem às famílias mais necessitadas.
Um grito pela paz e pelos direitos humanos silenciado – Quem foi Pedro Henrique?
Família é a base
Ana saiu de Tucano aos 17 anos para estudar em Salvador. Quando formou-se na faculdade de Letras, já tinha dois filhos. Pedro, o do meio, e Davi, o primogênito. A mais nova, Mariana, veio apenas 10 anos depois. “Pedro veio de uma forma diferente desde o início. Nasceu num domingo de dia dos pais, dentro de casa num apartamento nosso em Cajazeiras. Minha irmã, que morava comigo e já tinha trabalhado como auxiliar de enfermagem, que fez o meu parto. Quando deu a dor, ela percebeu que já estava nascendo, foi aquele alvoroço para buscar uma enfermeira, mas, quando chegou, já tinha nascido”, memorou.
Ela conta também que os dois filhos homens, Pedro e Davi, eram muito próximos do outro, pela diferença de apenas um ano e por terem crescido juntos. E que Pedro valorizava muito a família e era muito apegado ao filho mais velho de seu irmão, o pequeno Eric.
“A última imagem que Pedro viu na noite que aconteceu (o assassinato), pelo messenger, foi de Eric. Já perto da meia noite, eu mandei uma foto. Ele tinha vindo passar o natal em Salvador. E Pedro perguntou preocupado sobre o olho da criança, que tinha saído de Tucano com princípio de conjuntivite. Foi a última vez que ele viu o sobrinho”, contou dona Ana.
Mas os vínculos familiares, mesmo após a morte, não foram quebrados. O segundo filho de Davi, nascido em 2019, ganhou o nome do irmão, em sua homenagem. “Não conheceu o tio de quem herdou o nome, mas certamente ouvirá falar muito dele ainda. (…) Pedro levantou-se e já não quer mais engatinhar. É o início do seu caminhar”, poetiza dona Ana em seu Facebook apresentando às pessoas o seu netinho, e seu novo brilho/fôlego de vida.