COMUNICAÇÃO

Pesquisa de defensores públicos publicada pelo IBCCRIM analisa dados sobre impunidade juvenil

04/10/2018 23:23 | Por Daniel Gramacho - DRT/BA - 3686 (Texto e foto)
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O objetivo da pesquisa empírica foi verificar se a crença da impunidade, que fundamenta os discursos pela redução da maioridade penal, é corroborada pelos dados da prática das Justiças Criminal e de Infância e Adolescência

Em pesquisa publicada em setembro no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, intitulada – Para além da ilusão da impunidade juvenil: estudo empírico de prisões e apreensões em flagrante na comarca de Salvador –, realizada de forma empírica pelos defensores públicos da Bahia Daniel Nicory do Prado e Bruno Moura de Castro, foi identificado que,  no crime de roubo, o tratamento dado aos menores de 18 anos é, na maioria dos casos, equivalente ao dos adultos, e, num percentual não desprezível, até mais gravoso.

A pesquisa analisa a resposta do Poder Judiciário a prisões em flagrante efetuadas na comarca de Salvador entre setembro de 2015 e agosto de 2017, em que tenham sido apreendidos, simultaneamente, acusados de prática do mesmo ilícito, adolescentes em conflito com a lei.A base da pesquisa está composta de casos de 81 adultos – 25 presos por tráfico de drogas e 50 por roubo – e 67 adolescentes – 17 apreendidos por tráfico de drogas e 44 por roubo.

Dados extraídos da pesquisa indicam que dos 81 adultos presos juntamente com adolescentes em conflito com a lei, 62,92% tiveram a prisão preventiva decretada em audiência de custódia. Dos 67 adolescentes apreendidos em flagrante em conjunto com adultos, 36% tiveram internação provisória decretada.  Separados por crime, 5,88% dos apreendidos por tráfico e 54,55% dos apreendidos por roubos tiveram internação provisória decretada.

Daniel Nicory atua nas audiências de custódia e Bruno Moura tem atuação na defesa de adolescentes e crianças em conflito com a lei. Em entrevista concedida à Ascom da Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, os defensores públicos falaram como se deu o processo de elaboração e os principais pontos da pesquisa.

 

1º – Como surgiu a ideia de fazer a pesquisa apresentada pelo Boletim IBCCRIM?

Daniel Nicory: Há muitos anos eu venho desenvolvendo pesquisas científicas empíricas sobre a realidade do nosso próprio trabalho, para obter informações importantes sobre o serviço da Defensoria Pública e sobre os campos de atuação institucional, e uma das coisas que despertou a minha curiosidade foi o efetivo tratamento recebido pelos adolescentes apreendidos na mesma situação de fato em que adultos foram presos em flagrante. Por isso, propus a Bruno, colega que atua na defesa de adolescentes, que comparássemos os dados que nós mesmos coletamos durante a nossa atuação, complementássemos eventuais lacunas das nossas bases de dados, e verificássemos os resultados.

 

2º – Qual o principal resultado que os senhores identificaram com a pesquisa?

Daniel Nicory: Que, considerando os delitos nos quais a prisão e apreensão conjuntas são mais frequentes (roubo e tráfico de drogas), ora os adolescentes têm um tratamento significativamente mais brando (no tráfico de drogas), como seria esperado dada a condição particular de pessoa em desenvolvimento, mas que ainda assim representa algum tipo de controle e de resposta da sua conduta, e ora os adolescentes têm um tratamento equivalente ou até mais gravoso que o dos adultos (no caso do roubo), o que, pelo menos nesse caso, retira qualquer fundamento do discurso que aponta uma suposta ‘impunidade juvenil’ que exigiria recrudescimento da resposta do Estado.

 

3º – A pesquisa aponta que adolescentes têm por vezes tratamento igual ou pior aplicado pelo Poder Judiciário quando estão em conflito com a lei. De que forma esta realidade pode ser alterada?

Bruno Moura: Com relação ao adolescente em conflito com a lei, o Estado da Bahia ainda não assegurou a implementação da audiência de custodia, ou seja, a apresentação sem demora do adolescente apreendido perante um juiz, na presença de defesa técnica, antes da decisão que determina ou não a internação provisória do adolescente. Na pratica isso gera um tratamento mais gravoso tendo como consequência um número maior de constrições cautelares, pois não é garantido ao adolescente e sua defesa técnica contraditório prévio a decisão, nem mesmo o contato pessoal com a autoridade judiciária. Portanto, a efetivação da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina a apresentação célere de toda pessoa apreendida, no procedimento de apuração de ato infracional sinalizaria um tratamento igualitário ao que já é dispensado ao maior imputável, evitando assim uma distorção do sistema de responsabilização juvenil, o que possivelmente implicaria na diminuição da quantidade de casos em que os adolescentes são tratados de forma mais gravosa.

 

4º – Porque os adolescentes não são submetidos à audiência de custódia, uma vez que o Ministério Público também se faz presente nas audiências?

Bruno Moura: O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a apresentação do adolescente apreendido em até 24 horas ao Ministério Público, oportunidade em que é ouvido informalmente, antes mesmo de existir processo judicial formalizado. Em que pese posições em sentido contrário, entendemos que a apresentação ao órgão de acusação não supre a normativa internacional que fundamentou a audiência de custodia, tendo em vista que o órgão ministerial não é autoridade judiciária, nem mesmo é sujeito processual imparcial, tendo sempre como prisma a ideia de que deve ser garantido ao adolescente um sistema acusatório, onde as atribuições de cada instituição não se confundem e estão previamente definidas. Assim, considerando o Pacto de San Jose da Costa Rica e a própria Resolução 2013/2015 do Conselho Nacional de Justiça que já determinou a implementação da audiência de custodia para o adulto, não há motivos para negar essa garantia ao adolescente em conflito com a lei. Ressalte-se que o adolescente é também sujeito de direitos e que diante da sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento deve ter assegurado proteção integral por parte do Estado e não flexibilização de direitos e garantias fundamentais.

 

5ª – Partindo do princípio que os senhores são contra a redução da maioridade penal, qual seria a alternativa a curto prazo para diminuir a estatística dos adolescentes em conflito com a lei?

Bruno Moura: Existe um mito na sociedade de que a questão da violência tem origem na impunidade dos menores de 18 anos e que a solução do problema seria a redução da maioridade penal. Além de desconhecer que existe um sistema de responsabilização juvenil, inclusive com privação de liberdade, o senso comum despreza que, segundo dados da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, menos de 5% dos delitos do país são praticados por adolescentes. Por outro lado, segundo dados da UNICEF, o Brasil é o 6º país no ranking mundial de crianças e adolescentes vítimas de homicídios. Assim, é claro que eles são mais vítimas do que autores da violência. No Estado da Bahia, por exemplo, temos hoje custodiados no sistema penitenciário por volta de 15 mil pessoas, contudo em relação ao o sistema socioeducativo verificamos institucionalizados apenas cerca de 700 adolescentes. Desfeito o mito, necessário se faz que o Estado invista em políticas públicas que assegurem direitos a parcela mais vulnerável das crianças e adolescentes do país, garantindo assim condições e oportunidades para que eles vençam os obstáculos impostos pela desigualdade social, evitando desta forma o fim pragmático das unidades socioeducativas ou mesmo o da perda precoce da própria vida.

 

6º – Considerações finais.

Daniel Nicory: O conhecimento científico produzido de forma adequada serve tanto para a compreensão do nosso trabalho e para a busca de um aprimoramento dos nossos serviços, como para embasar os debates políticos e jurídicos diante dos quais a Defensoria Pública precisa se colocar para o alcance de uma sociedade cada vez mais democrática, livre e justa.