COMUNICAÇÃO

“Quem luta pelo excluído, luta pela Defensoria”, diz o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo em passagem pela DPE/BA

11/10/2019 17:33 | Por Lucas Cunha - DRT/BA 2944, com participação de Rafson Saraiva Ximenes
Ex-ministro Eduardo Cardozo em diálogo com o defensor-geral, Rafson Ximenes, e o assessor de relações institucionais, Álvaro Gomes.

Cardozo esteve em Salvador na sexta, 11, para participar do projeto "Cine Debate", e também visitou a sede da Defensoria baiana

O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo esteve nesta sexta-feira, 11, em Salvador como convidado da Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA para participar do projeto Cine Debate, da própria Defensoria.

Antes, na parte da manhã, o também ex-advogado-geral da União e ex-deputado federal esteve na sede da DPE/BA, no Centro Administrativo da Bahia, onde conversou com o defensor público geral, Rafson Saraiva Ximenes, de quem recebeu produtos editoriais da Defensoria. Também esteve presente ao encontro o assessor de relações interinstitucionais da DPE/BA, o ex-deputado estadual Álvaro Gomes.

Em entrevista para o site da DPE/BA, que contou com participou nas perguntas do defensor-geral, Rafson Ximenes, o ex-ministro da Justiça (2010-2016) falou sobre a crise no Estado de Direito no Brasil, o impacto desta crise no trabalho das Defensorias, sobre a necessidade que todas as comarcas brasileiras tenham a presença de defensores públicos, e ainda abordou da importância que deve ser dada ao trabalho da Defensoria no Brasil, país que possui uma história “autoritária, de negação de direitos e de exclusão social”.

“Quem luta pelo excluído, luta pela Defensoria. Quem luta pela igualdade e respeito de direitos, luta pela Defensoria. A Defensoria tem que estar institucionalmente enraizada na mesma dimensão e na mesma proporção que está o Ministério Público e que está a magistratura”, declarou Cardozo. Leia abaixo a entrevista completa.

O senhor tem feito algumas palestras pelo Brasil com o tema “a crise no Estado de Direito”. Como o senhor analisa o atual estágio dessa crise no País? E quais riscos que se correm com esta situação?

José Eduardo Cardozo – A questão da crise no Estado de Direito não é uma crise só brasileira, é uma crise do modelo de estado no mundo. Esse modelo de estado começou no século XVIII e seus principais pilares estão em crise. No Brasil, essa crise assumiu uma gravidade e uma potencialidade que talvez não exista em nenhum outro lugar. Eu tenho dito que talvez o Brasil hoje seja um grande laboratório da crise do Estado Democrático de Direito. Porque tudo aquilo que é potencial nos outros países aflorou aqui: você tem a crise da democracia representativa, um ativismo judicial desenfreado, que desequilibra a relação entre poderes. Aqui tem ainda a crise da globalização se manifestando em contradições entre a ordem jurídica interna e a externa. Ou seja, a crise do Estado de Direito aflorou no País de uma maneira que talvez cientistas políticos do mundo tenham que observar o Brasil para identificar o que acontece aqui.

Como esta crise no Estado de Direito pode impactar no trabalho das Defensorias Públicas?

A crise no Estado de Direito atinge todos os cidadãos e atinge mais diretamente os operadores do direito. E mais diretamente ainda as Defensorias Públicas. O defensor público é aquele que trabalha com a população excluída, na qual situações de autoritarismo mais se fazem presentes. O massacre do cidadão sempre atingiu o mais desfavorecido. Portanto, sempre que o Estado de Direito balança, todos perdem, mas perdem mais aqueles que têm dificuldade de fazer valer os poucos direitos que são suprimidos. Então, eu acho que a Defensoria Pública em estados autoritários sofre muito. O defensor público, em um estado autoritário, corre riscos dos governos de plantão tirarem a sua autonomia, de perseguirem quando eventuais bandeiras que são sustentadas afrontam o que o governante autoritário deseja.

No último dia 7 de outubro, completou-se 10 anos da aprovação da Lei Complementar 132/09, que trouxe diversos avanços para a autonomia das Defensorias Públicas. O senhor, inclusive, era deputado federal no período dessa aprovação. Como o senhor percebe os avanços dos trabalhos da Defensoria Pública nestes últimos 10 anos, na garantia do acesso à justiça?

Eu fiquei muito feliz com essa aprovação, porque lutei muito para que essa lei fosse aprovada, inclusive, com as lideranças das defensorias públicas, o Condege  e as demais entidades de classe. Eu comecei minha vida profissional quando não existia Defensoria Pública. Eu atuava gratuitamente na periferia de São Paulo com a população carente e aquilo me fez um defensor público de espírito, embora não tenha tido a honra de pertencer a carreira. E via nessa lei um grande marco na assistência judiciária do País e da afirmação do estado de direito. E acho que a Defensoria, desde a criação dessa lei, avançou muito. Um avanço desigual, porque alguns estados não receberam muito apoio no desenvolvimento das Defensorias e demoraram muito para iniciar suas implementações. Eu mesmo, como ministro da Justiça, conversei com alguns governadores para que a Defensoria fosse criada. Mas, seja como for, desde aquela época para cá nós tivemos grandes dificuldades, porém também tivemos grandes avanços. Acho que, com mais uma década, talvez a instituição Defensoria esteja chegando ao ponto daquilo que nós desejávamos no momento da aprovação da Lei.

O senhor veio aqui para fazer parte de um debate, promovido pela Defensoria, para discutir a própria democracia, a partir do filme “Democracia em Vertigem”. A Constituição Federal, quando define a Defensoria, define como instrumento e expressão do regime democrático. Na visão de ex-ministro da Justiça, ex-advogado geral da União e ex-deputado federal, qual a importância da Defensoria pra afirmação do regime democrático? Acha que a Defensoria é uma instituição que já atingiu um grau maior de sua importância pelos agentes políticos em geral?

Não há Estado Democrático de Direito sem a possibilidade da tutela de direitos. E não existe a possibilidade da tutela de direitos se ela for só com um setor da população. Então, o órgão que vai garantir fundamentalmente os direitos para todos é a Defensoria. Uma pessoa que tem condições contrata bons advogados. Quem não tem, como é que faz para se defender? Como é que tem acesso à Justiça? Como se defende de violações do próprio estado ou particulares? É por meio da Defensoria Pública. Sem esse tipo de trabalho, não há Estado de Direito. Acredito que a Defensoria Pública tem uma dimensão de essencialidade de vinculação umbilical com o estado de direito. Ou seja, não há possibilidade de um trabalho desses ser prescindido. Aí que eu vejo a necessidade, cada vez mais, de fortalecermos as Defensorias para fortalecermos o estado democrático de direito. Temos que ter defensores públicos em cada comarca, como determina a Constituição Federal, para permitir que as pessoas tenham a possibilidade de se consultar, de serem orientadas por um defensor público. Portanto, é uma realidade inseparável: democracia, Estado Democrático de Direito e Defensoria Pública. 

A Emenda Constitucional 80/2014 havia determinado prazo de oito anos para que todas as unidades jurisdicionais do país contassem com defensor público, prazo esse que termina em 2022. O senhor acha que isso é possível ocorrer? Crê que haverá vontade política para isso acontecer? Em que, tanto as Defensorias quanto a sociedade civil podem se organizar para lutar por isso?

Eu acho que essa é uma vitória constitucional, mas a Constituição tem que sair do papel. Eu tenho visto dificuldades. Por exemplo, eu mesmo sou advogado da Associação dos Defensores Públicos do Ceará e nós estamos discutindo a constitucionalidade no STF e também no Tribunal de Justiça do Ceará de uma lei que estabelece limite de gastos para a Defensoria, que ao ser mantida inviabiliza esse mandamento constitucional. Ou seja, no fundo, quando a Constituição diz o que deve ser, não está necessariamente dizendo o que será. O que será depende de luta, depende de abnegação, e aí as Defensorias tem que se mobilizar. Não só as Defensorias, a sociedade deve reconhecer na Defensoria um trabalho essencial para a manutenção de seus direitos e deve reivindicar por ela. Qualquer relação da lei com a realidade passa por uma disputa de poder. E essa disputa de poder tem que ser feita para que a Constituição saía do papel. É imprescindível que todo cidadão brasileiro possa se socorrer na Justiça. E, para isto, a Defensoria tem que estar presente em todas as comarcas do Estado Brasileiro. 

Como o senhor observa – no contexto do judiciário brasileiro – que a Defensoria, justamente aquela que está ao lado da população hipossuficiente, que dá acesso à justiça para aqueles que mais necessitam, seja aquela que recebe o menor valor entre as instituições de Justiça?

A democracia no Brasil é mais nova que o autoritarismo. Por óbvio, as estruturas do Estado de Direito que atuam na acusação e no julgamento tem uma história de fortalecimento institucional maior do que aqueles que atuam na defesa dos oprimidos. As instituições são frutos da história do país onde elas se instalam. A nossa história é uma história autoritária, de negação de direitos e de exclusão social. É natural que o órgão que defenda estes excluídos seja mais novo e mais debilitado. Agora, isso não quer dizer que nós não devemos fazer com que ele esteja em pé de igualdade com os demais órgãos da operação jurídica no estado brasileiro. Quem luta pelo excluído, luta pela Defensoria. Quem luta pela igualdade e respeito de direitos, luta pela Defensoria. A Defensoria tem que estar institucionalmente enraizada na mesma dimensão e na mesma proporção que está o Ministério Público e que está a magistratura. Este parece ser ponto óbvio para quem defende o estado democrático de direito.