COMUNICAÇÃO
Questão de saúde – Mesmo previsto em lei, acesso a aborto legal enfrenta diversos entraves no Brasil
A Defensoria da Bahia desenvolve diversas ações de articulação com a rede e educação em direitos para garantir a efetivação das previsões legais.
A cada 8 minutos, uma mulher é vítima de estupro no Brasil. E, mesmo com essa estatística assustadora, a interrupção da gravidez fruto de violência sexual é frequentemente vítima de ataques e tentativas de repressão. A mais recente foi uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibiu a assistolia fetal na interrupção de gestações acima de 22 semanas. A técnica é indicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde (MS).
Essa resolução, contudo, não foi a primeira tentativa de impossibilitar o aborto legal acima de 20 semanas. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, uma nota técnica do Ministério da Saúde estabeleceu que após 21 semanas e 6 dias “o abortamento toca a prematuridade e, portanto, alcança o limite da viabilidade fetal”. Mas além das ações diretas de obstrução, as mulheres que precisam fazer aborto legal no país enfrentam uma série de outras dificuldades para acessar o serviço.
A validade da Resolução do CFM foi suspensa pelo Ministro Alexandre de Moraes, mas até que isso tivesse acontecido, somente em Salvador, duas mulheres tiveram a realização do procedimento negado e buscaram auxílio da Defensoria Pública da Bahia (DPE/BA). Além de acolher as vítimas, a instituição realizou uma intensa mobilização com os profissionais e serviços de saúde credenciados para realização de aborto legal no sentido de garantir segurança jurídica para descumprimento da resolução do CFM.
No entanto, de acordo com a coordenadora do Núcleo de Defesa das Mulheres, Lívia Almeida, o posicionamento do Conselho teve um peso muito grande na tomada de decisão dos profissionais.
“Realizamos um trabalho em todos os espaços para que as pessoas entendessem a tragédia que era a resolução e que sua publicação tinha motivação unicamente ideológica. Além de ser um obstáculo ilegal à efetivação de um direito, o documento extrapolou os limites de regulamentação dos conselhos profissionais e a legislação vigente”, conta a defensora pública. Na última semana, a DPE/BA protocolou uma petição para ingressar como amicus curiae na ADPF 1141, que questiona a Resolução do CFM, e na qual o Ministro Alexandre de Moraes proferiu decisão liminar.
Apesar das atividades de sensibilização realizadas pela DPE/BA, as mulheres que se encaixavam nas especificações da resolução e buscaram a Maternidade Climério de Oliveira (MCO-UFBA), que é um dos serviços de referência para aborto legal no estado, foram orientadas sobre a necessidade de judicialização, caso mantivessem a decisão de interromper a gestação. De acordo com a gerente de Atenção à Saúde da unidade, Roberta Vieira, duas mulheres buscaram o serviço. A MCO, o Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual (Ambulatório HC-UFU) – NUAVIDAS, em Uberlândia/MG, e o Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros – CISAM, em Recife/PE, são os únicos serviços do Brasil que realizam interrupções acima de 22 semanas.
Culpa e desinformação
Ela conta que, mesmo com a existência de uma lei que garante atendimento imediato às vítimas de estupro, inclusive, com a realização de profilaxia de gravidez, muitas vítimas não sabem da possibilidade de aborto, desconhecem os serviços que realizam o procedimento e sentem culpa. “Os relatos são de sentimentos diversos como medo do agressor, muitas vezes conhecido da vítima, medo do julgamento das pessoas, culpa por eventualmente ter se colocado numa situação de risco”, relata Roberta Vieira.
Todos esses fatores contribuem para que as vítimas cheguem aos serviços de saúde em estágios avançados da gestação. “Ocorre também, principalmente com crianças, a não observação das mudanças que a gestação provoca no corpo, só descobrindo tardiamente”, completa a gerente de Atenção à Saúde da CMO.
De 2021 a maio deste ano, a MCO realizou 110 atendimentos para aborto legal. A idade das pacientes variou entre 11 e 40 anos, com maior predominância de mulheres na faixa de 19 a 30 anos. “35% dessas mulheres tinham pelo menos o segundo grau completo e 58% foram provenientes de Salvador. As demais vieram de outros municípios do estado da Bahia (30%) ou de outros estados (12%)”, informa o levantamento realizado pelo serviço de saúde.
Para combater o cenário de desinformação sobre o direito garantido pela legislação desde 1940, a Defensoria lançou a cartilha “Violência Sexual e Aborto Legal”. Construída a partir da articulação do Fórum Estadual sobre Aborto Legal, a publicação apresenta orientações úteis do episódio de violência à realização do aborto. Também por atuação da DPE/BA, o número de serviços habilitados para fazer o aborto legal no estado saltou de cinco para 15 unidades. Contudo, 10 das 15 estão concentradas na Região Metropolitana de Salvador.
A alta concentração dos serviços nas capitais também é apontada por especialistas como um empecilho já que as mulheres com gestação previstas em lei, muitas vezes, precisam fazer uma verdadeira peregrinação para garantir efetivação do direito ao aborto. De acordo com dados levantados pela GloboNews com base no Cadastrado Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, só 1,8% das cidades brasileiras têm unidades de referência para serviço de aborto legal. Na Bahia, as unidades estão situadas em cinco dos 27 Território de Identidade do estado.
Apesar do número restrito de unidades cadastradas, o direito ao aborto legal não se restringe aos serviços de saúde de referência. “Independente de estar cadastrados na rede, todos os serviços de saúde devem fazer o aborto. Está na lei”, esclarece a coordenadora de DH e do Nudem da DPE/BA, Lívia Almeida. “Se não estão fazendo, busquem a Defensoria, que vamos dialogar com a Sesab para entender porque isso está acontecendo”, acrescenta.
As pessoas que encontrarem dificuldades ou negativas para realizar o aborto legal podem buscar o Nudem da Defensoria da Bahia, presencialmente na Casa da Mulher Brasileira ou através do e-mail nudem@defensoria.ba.def.br, ou procurar as unidades da DPE/BA no interior do estado.
A série de Reportagem “Questão de saúde” se propõe a estimular o debate sobre o direito ao aborto como uma questão de saúde das pessoas que gestam. O tabu e o viés ideológico com que a temática é abordada contribui para o desenvolvimento de danos físicos, emocionais e materiais que acometem, inclusive, as pessoas que possuem o direito legal. O lançamento da série coincide com a celebração do Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher e Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. O principal objetivo da data é chamar a atenção e conscientizar a sociedade sobre diversos problemas de saúde causadores de mortalidade materna. No entanto, o aborto inseguro não é um tema que ganha destaques nas campanhas do mês da Saúde da Mulher. Ainda teremos outras três reportagens especiais, além de divulgações nas redes sociais.