A primeira pessoa que chamou minha atenção na Defensoria foi um senhor de óculos com voz de trovão. Era impossível ver qualquer conversa ou reunião com Raul Palmeira e sair indiferente. Eram admiração e risadas garantidas, mas também medo do seu humor ferino e da oratória insuperável. Ninguém era capaz de enfrentar aquele talento em um debate.

Raul foi por muito tempo O grande nome da Defensoria baiana. Fez fama no Tribunal do Júri. Conhecia medicina legal, conhecia as nuances processuais, conhecia a literatura, conhecia a história, conhecia a alma humana, estudou teatro. Sabia identificar nos processos de centenas de páginas aquela linha onde estava a informação ou a omissão que convenceria os jurados. “O diabo mora nos detalhes”, sempre dizia.

Era uma época em que a Defensoria acabara de se tornar autônoma. Todos se referiam a ela com uma espécie de piedade indulgente: “Coitada da Defensoria Pública… um trabalho tão nobre, mas sem nenhuma estrutura, os defensores são tão bonzinhos…”. Exceto quando se falava de Raul Palmeira. Aí a coisa mudava. Ou se tratava da admiração absoluta por ser O MELHOR TRIBUNO DA BAHIA, ou era a raiva de alguém que estivera do outro lado quando ele havia conseguido virar um julgamento em que todos davam por certa a condenação.

O júri era a sua verdadeira paixão. Falava dos seus 1.000 júris com mais orgulho que Pelé dos 1000 gols (aliás, quem nunca ouviu falar no júri de “Pelezinho”?). Mas, era bem mais que isso. Exerceu diversas funções na Defensoria. Foi fundamental na história da Associação de Defensores. Era considerado “o legislador” da instituição, pela facilidade na redação de normas. Coordenou projetos premiados. E era um amigo extraordinário, que fazia tudo e comprava todas as brigas por quem gostava.

Foi promovido à última classe da carreira e deixou o Tribunal do Júri para atuar junto ao Tribunal de Justiça. Era uma honra, mas não o satisfazia. Sentia falta da adrenalina, mas também havia algo que o magoava. Ele via as novas gerações de defensores chegando sem conhecer o grande talento de Raul Palmeira. Nunca escondeu a vaidade. Aliás, algumas vezes em que me viu recusando elogios, repetiu a mesma lição: “ pare com essa besteira, que a modéstia é a virtude dos idiotas”. Também é célebre a passagem em que após uma absolvição, um réu falou: “graças a Deus!” e ouviu de pronto: “ Graças a Deus, não! Graças a Raul Palmeira! Deus nunca fez a prova da OAB”!

Quando fui alertado desse incômodo que Raul sentia, pensei em um esboço de projeto de júris simulados de personagens e fatos históricos. Algo que fosse cativante para o público, mas trouxesse à tona reflexões sobre direito de defesa, estratégias jurídicas e sobre a história popular. Algo que fizesse as pessoas se identificarem com os réus e lembrassem que Zumbi, Mandela e todos os líderes populares mais importantes, sem exceção, foram e continuam sendo perseguidos penalmente. Chamei ele para dividir o desenvolvimento comigo e Eva Rodrigues. Topou na hora.

Topou, mas disse: “a primeira defesa é minha, Luiza Mahin”. Eu não esperava nada diferente! Nesse julgamento, Luiza Mahin foi interpretada por ninguém menos que a super atriz Valdineia Soriano. Ao final, fui agradecê-la, mas ela me pediu desculpas. Não entendi a razão. Ela foi incrível! “Peço desculpas porque chorei, mas não um choro técnico. Chorei de verdade, porque não consegui conter a emoção com o discurso de defesa de Raul Palmeira. Uma atriz não deve perder o controle”. Esse era Raul.

Hoje acordei com a notícia de que ontem a Bahia perdeu o maior tribuno que já possuiu. Escrevo essas palavras às seis da manhã, ainda sob esse impacto. Coincidentemente, o último livro que li foi o Auto de João da Cruz, de Ariano Suassuna, que termina com um júri presidido por Deus e com o diabo (aquele dos detalhes) na acusação, assim como o Auto da Compadecida. Acho esses júris de Suassuna espetaculares para entendermos como o tratamento dado à defesa e à acusação revelam a propensão maior a condenar ou absolver.

Depois da notícia, em meio à tristeza, comecei a imaginar como serão os próximos julgamentos por lá. Sim, porque Deus não é besta e não vai deixar de escalá-lo para fazer as defesas. Só digo uma coisa: tenho pena do diabo. Vai passar muita raiva! Agora só vai pro inferno fascista e golpista, porque esses Raul se recusa a defender.

Descanse em paz, Mestre Raul. Quando eu chegar aí, me defenda!