COMUNICAÇÃO
Reentrada nas prisões em flagrante é a menor dos últimos três anos, aponta relatório da Defensoria
O estudo sistematiza os dados coletados a partir dos autos de prisão em flagrante de 2021 e apresenta informações que desmentem inverdades sobre audiência de custódia
O número de pessoas que voltaram a ser presas em flagrante no ano de 2021 é o menor dos últimos três anos. A informação é do relatório Autos de Prisão em Flagrante na Comarca de Salvador e possibilita confrontar mitos difundidos sobre as audiências de custódia que colocam o instrumento como mecanismo de impunidade e permissão para novos crimes. O estudo realizado pela Defensoria Pública da Bahia (DPE/BA) foi divulgado nesta segunda-feira, 19, durante coletiva de imprensa realizada na sede administração da instituição, no CAB.
Entre janeiro e dezembro de 2021, a DPE/BA analisou 3.647 autos de prisão em flagrantes e verificou que em apenas 4,6% dos casos as pessoas voltaram a ser detidas no mesmo ano. A taxa de retorno, como é chamada a ocorrência de nova prisão em flagrante no mesmo ano, é menor que a registrada em 2020, quando o percentual esteve em 6,1%; e que em 2019, ano em que foi registrada uma taxa de 7,2%.
Para cálculo da taxa de retorno, a Defensoria considerou todas as pessoas presas em flagrante cujo nome aparece em duplicidade na base de dados e excluiu os homônimos com base no nome da genitora e data de nascimento. O estudo também aponta que apenas 7,95% dos flagranteados já possuíam condenação criminal anterior. “Este é um dado significativo para ruir o argumento falacioso de tom eficientista de que as audiências de custódia servem para promover a impunidade dos delitos praticados na sociedade”, garante o documento.
Na avaliação do defensor público geral, Rafson Ximenes, os resultados apresentados pela pesquisa demonstram a capacidade da Defensoria de ler a realidade. Para ele, esse tipo de investigação é fundamental, sobretudo, no Direito Penal que é visto como solução mas não atua sobre os problemas sociais anteriores aos conflitos judicializados. “Através desses dados, conseguimos identificar a necessidade de políticas públicas, verificar a atuação das instituições do Sistema de Justiça e abrir caminhos para que o Estado pense soluções para melhorar os problemas da sociedade”, avalia Ximenes.
Por conta da pandemia e da suspensão da realização das audiências de custódia de forma presencial, o acompanhamento sobre o procedimento não pode ser feito como no ano de 2019. Contudo, a assessora de pesquisas estratégicas da DPE/BA Fernanda Morais, afirma que os dados obtidos através do estudo auxiliam a combater mitos acerca do procedimento jurídico na medida em que demonstram que as inverdades difundidas sobre audiências de custódia não se confirmam na prática.
A defensora pública explica ainda que as audiências de custódia têm dupla finalidade, que são embasadas e enaltecidas pelo estudo. “A primeira é verificar se houve tortura durante a prisão em flagrante, e a segunda é analisar qual o destino que deve ser dado à pessoa presa, averiguando se estão presentes os critérios legais para a decretação da prisão preventiva”, esclarece. Para ela, o fato de ser um expediente relativamente recente, instituído a partir de 2015, contribui para a difusão de informações falsas.
Prisões preventivas
No que diz respeito à segunda finalidade da audiência de custódia, o estudo mostra que, mesmo com a suspensão do expediente na maior parte do período analisado, houve maior incidência de prisões preventivas em crimes considerados mais gravosos pelo Código Penal. Ela foi decretada em 100% dos flagrantes por feminicídio; 78,94% dos homicídios e 76,92% dos casos de latrocínio. A liberdade provisória, por outro lado, foi ordenada em 74,40% dos furtos.
Latrocínio e furto são considerados crimes contra o patrimônio pelo Código Penal e nos estudos anteriores os flagrantes dessa natureza eram apresentados na mesma categoria. “A estratificação nos permite ver com mais clareza de que forma o judiciário decide de acordo com a tipificação criminal. Como a pesquisa comprova, a esmagadora maioria das pessoas acusadas de cometer crimes mais gravosos tem a sua prisão preventiva decretada pela Justiça”, explica Fernanda. O dado depõe contra o mito socialmente difundido de que a polícia prende e a Justiça coloca nas ruas pessoas que apresentam risco à segurança pública.
A implementação das audiências de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais de direitos humanos internalizados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, a realização das audiências de custódia foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar, em 2015, a ADI 5240 e a ADPF 347.
Ocorrências de tortura ou de maus-tratos
Além dos pactos internacionais e do julgamento do STF, a essencialidade das audiências de custódia foi demonstrada pelo estudo da Defensoria ao analisar a ocorrência de lesões contra os custodiados. O documento demonstra uma ausência de informações sobre a temática em 3.174 autos de prisão em flagrante, a imensa maioria dos casos. “Tendo-se em vista que as audiências de custódia têm como uma de suas razões de existir a coibição da prática da tortura, essa gigantesca falta de informações sobre a temática das lesões é preocupante”, salienta o documento.
Nos casos em que foi possível verificar agressões (254), o maior índice de ocorrência se deu entre as pessoas negras, 88,97%, contra 1,96% entre brancas. Em 9,05% dos casos não foi possível identificar a cor. Ainda segundo o relatório, 84 custodiados disseram saber a autoria das lesões e 60,71% atribuíram a agentes de segurança (policial militar ou civil). Em 38,58% dos casos a lesão era visível e, dentre elas, 28,6% considerada leve. Contudo, chama atenção o elevado percentual de ausência de informação para ambas as variantes (47,63% sobre a visibilidade e 64,3% acerca da gravidade).
“Em pesquisas anteriores, demonstramos que, durante o período em que a audiência de custódia não foi realizada, não foi possível verificar a ocorrência de lesões durante a prisão em flagrante, o que demonstra quão essencial esse ato é para a justiça como um todo”, avalia a defensora pública Fernanda Morais.
Perfil das pessoas presas em flagrante
Entre janeiro e dezembro de 2021, o perfil das pessoas presas em flagrante não destoou do que foi observado na análise dos últimos sete anos de realização da pesquisa. Homens (94,1%), negros (97,3%), com até 29 anos (69,3%) e ensino fundamental incompleto (33,67%) foram os principais detidos em flagrantes na comarca de Salvador no último ano. E a Defensoria Pública promoveu a garantia de direitos de 59% das pessoas flagranteadas no período de coleta de dados pela pesquisa.
Entre 2015 e 2021, a Defensoria analisou os autos de prisão em flagrante de 31.029 pessoas. Durante esse período o perfil das pessoas detidas foi majoritariamente de homens (94,2%), negros (98,3%), jovens com até 29 anos (65,53%) e com ensino fundamental incompleto (32,76%). O que também não alterou foi a manutenção da DPE/BA como principal representante na garantia de direitos (61,5%).
O defensor geral Rafson Ximenes considerou os dados sobre o perfil das pessoas presas em flagrantes “preocupantes”. Para ele, essa é a confirmação da realidade do racismo que faz com que as pessoas negras sejam consideradas suspeitas de delitos e inscrita na ausência de políticas para reduzir a desigualdade entre negros e brancos. “Com isso, a população negra se mantém mais vulnerável e alvo preferencial das políticas de segurança”, aponta.