COMUNICAÇÃO
Reflexão sobre aporofobia no direito penal encerra programação da Semana da Defensoria
Além da aporofobia penal, a programação especial realizada pela DPE/BA discutiu o anacronismo institucional, uso de ciência de dados e a relação das mídias com as pessoas vulneráveis.
“O sistema penal tem que deixar de atacar os pobres por serem pobres”, reivindicou a doutora em Direito Penal e professora da Universidade de São Paulo (USP), Ana Elisa Bechara, durante sua fala na programação da Semana da Defensoria 2022, que aconteceu nesta quinta-feira, 19, no Hotel Wish. Com a palestra “Aporofobia e a luta contra os pobres”, ela encerrou o ciclo de discussões e homenagens que compuseram o evento promovido pela Defensoria Pública da Bahia-DPE/BA em celebração pelo Dia Nacional da Defensoria.
Em sua exposição, Ana Elisa convidou os/as defensores/as públicos, servidores e autoridades presentes no evento a refletir sobre o que chamou de modelo penal de aporofobia. A aporofobia pode ser traduzida como a aversão aos pobres pelo fato de ser pobre. O termo cunhado na década de 1990 ganhou popularidade nas redes sociais a partir das postagens do Padre Júlio Lancellotti que denunciam, entre outras coisas, intervenções arquitetônicas feitas para evitar a presença e permanência das pessoas em situação de rua.
Na análise da palestrante, essa aversão aos mais pobres pode ser identificada no modelo penal brasileiro que, para ela, está em estado de exceção permanente. “O direito penal aporofobico pode ser exemplificado pela Lei de Drogas, que traz em seu artigo 28 uma diferenciação entre a posse e o tráfico muito mais relacionada às circunstâncias sociais e pessoais do agente e que, por isso, vai diferenciar as pessoas a partir das classes sociais, do lugar em que moram e da cor da pele”, assinalou. Outros exemplos de traço aporofóbico estariam na aplicação do princípio da insignificância e na individualização da pena.
No caminho oposto, a plutofilia, proteção aos mais ricos, pode ser apontada na Lei 8137/90, que dispõe sobre os crimes contra a ordem tributária. “A gente tem nessa lei um dispositivo que quebra a isonomia porque diferencia o tratamento dos delitos fiscais de outros tipos de delitos. No direito penal econômico, o crime depende de uma ofensibilidade mínima sem a qual a própria fazenda não tem interesse na execução, nos outros casos não. Tem pessoas que ficam presas por anos ou meses por furtar um litro de leite ou pacote de macarrão”, exemplificou.
Para ela, o sistema de justiça criminal é marcado pelo racismo estrutural. Por isso, a intervenção penal possui um público determinado, que é composto pelas pessoas negras e pobres. A materialidade dessa análise pode ser constatada no perfil dos presos em flagrante identificado pelo Estudo sobre Impactos da Recomendação 62/20 do Conselho Nacional de Justiça nos Flagrantes Ocorridos em Salvador, realizado pela DPE/BA. Segundo o levantamento, entre março e junho de 2020, 96,14% das pessoas presas em flagrante foram do sexo masculino e 98,52% são negros.
Como proposta para reorganização do sistema penal, Ana Elisa defendeu o abandono da ideia de privação de liberdade como sanção penal por excelência. “As penas alternativas continuam sendo alternativas. Apesar de todos os problemas que a gente já conhece, a pena privativa de liberdade continua sendo a coluna vertebral do nosso sistema. Isso tem que ser abandonado. Não dá pra pensar a responsabilidade penal sem levar em conta as diferenças”, determinou.
A relação da mídia com os mais pobres
Na mesa “Visibilidade aos invisíveis: grande mídia, redes sociais e os vulnerabilizados”, profissionais da comunicação discutiram acerca da importância de contar as histórias dos mais pobres como escolha política. O escritor Xico Sá assinalou as dificuldades enfrentadas por jornalistas em colocar as histórias ligadas à pobreza na mídia e os cuidados necessários em contá-las. Segundo ele, muitas vezes, os acordos comerciais entre veículos e empresas associadas às mazelas vividas por determinados grupos impossibilitam a divulgação.
“Colocar a dor dos humilhados na mídia sempre foi uma guerra de repórteres. Contar essas histórias pode mudá-las. Mas dependendo da forma como essas pessoas são expostas, você pode estar condenando-as a mais abismos”, pontuou Xico Sá. Para o coordenador do Núcleo Investigativo do UOL Flávio VM Costa, retratar as desigualdades da sociedade brasileira é uma escolha política. “Em um país racista como o Brasil, é preciso se posicionar politicamente. E a escolha das histórias que contamos no jornalismo faz parte disso”, afirmou.
Coordenador da Assessoria de Comunicação da DPE/BA, o jornalista Alexandre Lyrio ressaltou que o projeto comunicacional da instituição visa retratar o público vulnerável de forma digna, sem estigmatização. “Eu entrei na Defensoria ciente de que a instituição é um celeiro de grandes histórias. Nossa ideia é fazer com que as histórias dos nossos assistidos estejam refletidas em nossas redes. Eles precisam se enxergar cada vez mais nesse projeto de comunicação”, reforçou.
Já a editora-chefe do Jornal CORREIO Linda Bezerra falou sobre a importância das histórias para o jornalismo e apresentou alguns casos que tiveram ampla repercussão através do periódico. “As histórias estão para o jornalismo, como a poesia está para a literatura. O papel do jornalismo é dar voz para essas pessoas”, afirmou.