COMUNICAÇÃO
SALVADOR – Em nova edição, relatório sobre audiência de custódia produzido Defensoria mostra perfil de mais de 5 mil pessoas presas em flagrante em 2019
Com 30 páginas de dados relativos a 2019, Relatório foi lançado hoje, 29, na capital, e também detalha circunstâncias das prisões em flagrantes ocorridas
Homem, negro, jovem, ensino fundamental incompleto e que tem uma renda mensal abaixo de dois salários mínimos. Este é o perfil socioeconômico da maioria das 5.153 pessoas em flagrante na capital baiana no ano passado e que consta no “Relatório das Audiências de Custódia em Salvador/Bahia – ano 2019”, lançado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA na manhã desta quinta-feira, 29, e que atraiu defensores públicos, servidores, profissionais da imprensa e a sociedade civil.
Transmitida, simultaneamente, nas páginas e canais da DPE/BA nas redes sociais Facebook, Twitter e YouTube, a apresentação dos dados do Relatório foi conduzida pelo coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da Instituição, Maurício Garcia Saporito, e pelo assessor de Gabinete para Pesquisas Estratégicas, Lucas Marques Resurreição. A transmissão foi conduzida pela coordenadora da Assessoria de Comunicação da Defensoria Vanda Amorim.
“Coletamos estes dados desde 2015, quando as audiências de custódia começaram a ser realizadas em Salvador, e percebemos que esse projeto de ouvir as pessoas após a prisão seria uma fonte de dados para subsidiar o nosso trabalho finalístico nas diversas especializadas da Defensoria e também pensar em políticas públicas. É, sem dúvida, um relatório paradigmático e que trabalhamos com muita informação: só em 2019 foram 5.153 pessoas presas em flagrante”, adiantou o coordenador Maurício Saporito, no início da apresentação.
Concordando que a organização destas informações favorece a atuação da Defensoria de forma estratégica, o assessor Lucas Resurreição explicou a metodologia utilizada no desenvolvimento da pesquisa sobre os flagrantes registrados em Salvador e como os dados coletados pela Especializada Criminal e de Execução Penal foram analisados.
“Utilizamos o método empírico-quantitativo e, para nós, da área de pesquisa, dado é informação e informação é um instrumento poderoso que nos permite ir além de uma ideia meramente abstrata. A Defensoria tem o dever de organizar e sistematizar as informações para compreender a realidade na qual atuamos e, a partir daí, nos possibilita traçar caminhos e atuações de viés estratégico”, explicou o assessor de Pesquisas Estratégicas da Instituição.
Retrato excludente
Com 30 páginas só de dados e gráficos relativos a 2019 (as demais páginas são dos dados globais 2015-2019), o Relatório aponta que, das 5.153 pessoas presas em flagrante durante este período em Salvador, 4.804 dos custodiados eram homens e 349 eram mulheres.
Deste total, 97,8% (4.428) se autodeclararam pretos/pardos e 2,2% (98) brancos e, cruzando estes dados com a decisão tomada em relação à situação deste flagranteado, a pesquisa constata que o número de liberdade provisória é quase igual entre pretos/pardos (50%) e brancos (49%), mas quando a medida é de prisão preventiva os pretos/pardos respondem por 41,4% do total e os brancos totalizam 33,7% destes registros. “Ou seja, existe uma chance maior de uma pessoa preta/parda ser presa em flagrante e levada a uma audiência de custódia e uma tendência maior a ela ficar presa também”, observou o coordenador Maurício Saporito.
Quanto à idade, o documento mostra que 3.345, ou seja, 65,3% dos custodiados tinham idade entre 18 e 29 anos. Com relação à escolaridade, dos que responderam, 53,3% (1.590) dos flagranteados informaram que possuíam até o ensino fundamental incompleto. Já no quesito renda mensal, 98,6% informou que recebia abaixo de dois salários mínimos.
“Em resumo: é uma população negra (preta e parda), masculina, jovem, escolaridade baixa, idade até 29 anos e renda inferior a dois salários mínimos. Este é o retrato de quem ingressa no sistema prisional na capital, um retrato muito excludente que demonstra uma tendência e, ainda que a gente lute e mostre esta informação pedindo políticas públicas diferentes, a política de segurança pública e a política repressiva penal continuam sempre na mesma toada. Isso é um fenômeno nacional”, acrescentou Saporito.
Um outro dado que demonstra a hipossuficiência econômica de quem é autuado em flagrante, segundo o relatório, é que, em relação à defesa, 61,9% foi assistido pela Defensoria Pública e 38,1% constituiu advogado particular. “Trabalhamos com a maioria dos casos e isso demonstra também a nossa atuação e a nossa presença junto ao Sistema de Justiça”, completou o coordenador.
Já em relação à decisão do juiz do Núcleo de Prisão em Flagrante – NPF (que passou a ser chamado de Vara de Audiência de Custódia), onde são realizadas as audiências de custódia, em 49,2% dos casos foi concedida a liberdade provisória e em 41,1% foi decretada a prisão preventiva. Ainda sobre as decisões, em 93,3% dos casos houve algum tipo de restrição à liberdade do flagranteado e em 6,7% a liberdade foi de forma plena.
“É isso que a audiência de custódia traz de vantagem: o juiz ou juíza quando se depara com esse perfil de pessoas [com perfil socioeconômico mais vulnerável] que foram autuadas conseguem perceber o quanto a cadeia e a permanência no cárcere vão vulnerabilizar mais essas populações e isso gera um índice de soltura maior”, constatou.
Ainda sobre as decisões, em 93,3% dos casos houve algum tipo de restrição à liberdade do flagranteado e em 6,7% a liberdade foi de forma plena, o que demonstra que o Poder Judiciário apesar de conceder mais liberdade, tende a manter algum tipo de cerceamento à liberdade das pessoas. Entre os exemplos mais comuns destas restrições estão o comparecimento periódico em Juízo, proibição de acesso a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada, proibição de ausentar-se da comarca; recolhimento domiciliar, suspensão do exercício da função pública, internação provisória e monitoramento eletrônico.
Novo dado sobre o fundamento da ordem pública
A grande novidade que esta nova edição do Relatório traz em relação ao que foi lançado o ano passado, que analisou todos os dados referentes aos anos de 2015 a 2018, é a constatação de que em 99,7% dos casos em que a prisão preventiva foi decretada o fundamento utilizado foi o da manutenção da ordem pública.
“Para que uma pessoa autuada em flagrante ou que responde a um processo fique presa é preciso que o juiz observe alguns requisitos previstos no Código de Processo Penal. O artigo 312 diz: uma prisão preventiva pode ser decretada por garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução e para assegurar a aplicação da Lei Penal. São quatro fundamentos, sendo três deles bem fechados e um muito aberto que a legislação utiliza manter pessoas presas. O que notamos, a partir deste gráfico [de 99,7% dos casos], é que há um abuso do uso deste fundamento considerado como coringa, aberto e algo que não conseguimos ponderar”, revelou Maurício Saporito.
Prova através dos dados
Com relação às imputações penais dos casos, 41,8% (2.152) foi de crimes contra o patrimônio, sendo os principais deles roubo e furto e 40,1% (2.068) sobre a Lei de Drogas. Tiveram, também, 421 casos ligados à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), 145 sobre o Estatuto do Desarmamento, 138 referentes ao Código Brasileiro de Trânsito e 228 outros crimes ligados a casos que envolvem homicídios e os contra a dignidade sexual.
“Esses dados mostram que aquele discurso muito utilizado pelo senso comum de que as audiências de custódia servem para soltar quem comete crimes como estupros, homicídios e latrocínios cai por terra. Estamos provando que isso não procede”, garantiu o coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da Defensoria. “A maioria do senso comum sobre o sistema penal não sobrevive aos dados”, concordou o defensor público geral, Rafson Saraiva Ximenes, que acompanhou a toda a transmissão e fez questão de comentar no chat.
O relatório também traz detalhes sobre a utilização ou não de armas: em 78,2% (4.030) não houve emprego de arma e em 1.127 casos foram registrados a utilização de armas – de fogo, brancas ou simulacros (de brinquedo), sendo que 915 delas (ou 81,5%) foram apreendidas.
Questão da violência como mais uma função da audiência de custódia
Já no quesito lesão, 45,8% dos flagranteados afirmaram ter sofrido algum tipo de agressão, ou seja, nos casos em que esta informação foi registrada, 4 em cada 10 custodiados disseram que foram agredidos. “Aqui está mais uma função da audiência de custódia: expor a questão da violência, seja ela policial ou de populares. O cidadão, ainda que tenha sido apreendido cometendo algum crime, tem direitos. Ele continua sendo cidadão e sua integridade física deve ser preservada”, ressaltou Saporito.
Fazendo um comparativo entre estes dados sobre a agressão com a autodeclaração de cor, o Relatório identifica que 26,8% dos negros teriam sofrido agressão e 19,4% dos brancos. “É possível identificar, de acordo com os dados observados, que o universo de custodiados que indicaram ter sofrido lesão é de 1.292 pessoas em números absolutos. Destas, 1.164 pessoas afirmaram saber identificar quem teria sido o responsável pela lesão, o que representa 90,2% dos lesionados”, observa o Relatório. Sobre esta identificação, os policiais militares (77,6%) – que são os que mais conduzem os flagranteados – e os populares (7,1%) são os principais apontados.
Drogas e taxa de retorno
Já com relação à apreensão de drogas, constatou-se que em 40,5% de todos os flagrantes houve apreensão de drogas, isoladas ou em conjunto com outras, sendo as principais cocaína, maconha e crack, cuja quantidade variava entre 10 gramas a um quilo, a depender da droga. “São, supostamente, pequenos traficantes, pois há um percentual muito baixo de grande quantidade de droga apreendida em flagrante”, percebeu o assessor de Gabinete, Lucas Resurreição, fazendo a comparação com o que é apreendido e considerado como consumo pessoal em outros países.
A liberdade provisória foi concedida em 52,8% dos casos em que a apreensão de droga foi de maconha; em 56,8% dos casos quando a apreensão foi de cocaína e em 52,9% dos casos de apreensão de crack. “Em relação à maconha, é um percentual que se mantém constante mesmo considerando os outros tipos de drogas que, em tese, seriam consideradas mais perigosas, como a cocaína e o crack”, acrescentou.
Para encerrar a apresentação, mais uma vez falando do senso comum, o último dado apresentado foi sobre a taxa de retorno geral. “Existe uma máxima geral de que a audiência de custódia traz o aumento da criminalidade, pois quem sair vai cometer um crime depois. Fomos observar a realidade e, considerando as pessoas que foram soltas, filtramos os nomes e chegamos ao quantitativo de 217 retornos, que representa 7,2%, ou seja, em 92,8% dos casos não foram registrados retornos, o que prova que é falsa a hipótese da volta ao sistema. Isso representa bem a importância de nos guiarmos por dados e informações, obtidos de uma forma séria e transparente”, concluiu o assessor Lucas Resurreição.
Alimentação contínua dos dados
A planilha com todos esses dados e a alimentação contínua é de responsabilidade dos coordenadores da Especializada Criminal e de Execução Penal da DPE/BA, Fabíola Pacheco e Maurício Saporito e também da servidora Isadora Cardim, que complementa com todas as informações necessárias para subsidiar o trabalho feito pela Instituição, seja na defesa dos assistidos como também na sugestão e formulação de políticas públicas.
“Parabéns à DPE/BA pelo cuidado com os dados e com a sistematização de informações desde o início das audiências de custódia”, parabenizou Jamile Carvalho, que estava assistindo à transmissão pelo YouTube e fez questão de deixar seu comentário. “Muito importante a divulgação desses dados”, concordou Daniel Fonseca Fernandes, também nos comentários.
Clique aqui e leia o relatório na íntegra.