COMUNICAÇÃO

Sem-tetos com casa: Defensoria identifica aumento de pessoas com moradia que utilizam as ruas para sobreviver durante pandemia

19/08/2021 12:14 | Por produção: Tunísia Cores; texto: Ailton Sena; edição e revisão: Alexandre Lyrio e Arthur Franco

Além do óbvio crescimento da população em situação de rua, a mudança no perfil desse público foi identificada durante alguns dos 150 atendimentos mensais realizados pelo Núcleo Pop Rua

Aos 70 anos, dona Maria José mora em Castelo Branco. Quer dizer, só vai em casa para dormir e olhe lá. Todos os dias, passa a manhã e a tarde perambulando pela Estação Aquidabã e, muitas vezes, fica por ali mesmo a noite toda. “O que a senhora vem fazer todos os dias aqui, dona Maria José?”, perguntamos. A resposta é tão simples quanto triste. “Venho comer!”.

Para muitas pessoas como Maria José, a crise econômica, social e sanitária causada pelo coronavírus implicou na incapacidade de prover o próprio sustento ou o sustento da família. Com isso, mesmo quem possui residência fixa passou a ocupar as ruas como estratégia de sobrevivência. Dona Maria José confia nos sopões e outros grupos de doação de alimentos. “Nem fogão eu tenho. Meu fogão quebrou, não tenho dinheiro para comprar gás. Minha geladeira também quebrou. Como é que fica em casa? Aqui consigo uma comida que o povo dá”, explica.

Aos 70 anos, dona Maria José vai todos os dias ao Aquidabã em busca de alimentos

A identificação de cada vez mais pessoas em situação de rua com esse perfil é uma estimativa feita através das itinerâncias realizadas pelo projeto Pop Rua em Movimento, desenvolvido pelo Núcleo de Atendimento Multidisciplinar da População em Situação de Rua (Núcleo Pop Rua) da Defensoria Pública. Assistida pela Defensoria, dona Maria José conseguiu ter acesso ao auxílio moradia, já que o quartinho que aluga tem condições insalubres.

Praça da Piedade, Viaduto do Politeama, Aquidabã, Largo dos Mares – Esses são alguns pontos da capital baiana que apresentam alta concentração de pessoas em situação de rua e que viram crescer essa população durante o período de pandemia.

Os atendimentos nos espaços públicos realizados pelo Pop Rua foram mantidos durante o período de pandemia para garantir que as pessoas mais vulneráveis tivessem acesso aos serviços ofertados pela Instituição. Em média, durante a pandemia, o Pop Rua tem realizado 150 atendimentos mensais.

“Nós não fomos insensíveis à parcela da população que não têm acesso aos meios tecnológicos, por isso não deixamos de lado o trabalho itinerante que já vinha sendo realizado antes da pandemia. Continuamos visitando os principais locais onde essas pessoas costumam ficar, com isso mantivemos os esforços para garantir o mínimo possível para a existência de pessoas que pouco ou nada tem”, explica a  coordenadora da Especializada de Proteção aos Direitos Humanos da DPE/BA, da qual o Núcleo Pop Rua está vinculado, Eva Rodrigues.

Eva e toda a equipe confirmam que, durante a pandemia, muitas pessoas que perderam seus empregos passaram a desenvolver atividades informais, como a catação de material reciclável e a venda de picolé ou de balas. Mas apesar de terem um local para onde voltar, se mantiveram nas ruas por não ter comida em casa, dinheiro suficiente para pagar transporte ou por vergonha de voltar com as mãos vazias.

“Foi uma mudança muito nítida no perfil das pessoas que ocupavam as ruas antes, que na sua grande parte não tinha para onde voltar e, durante a pandemia, quando a gente percebe pessoas que têm um domicílio, porém estão desempregadas, sem alternativa, e utilizando a rua como estratégia de sobrevivência”, relata Sandra Carvalho, assistente social que há 18 anos atua com a população em situação de rua.

Outra característica observada durante as itinerâncias foi a manutenção da situação de rua por parte daqueles que passaram a receber o Benefício Eventual, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS (Lei 8.742/93). Em Salvador, o valor do auxílio é de R$ 300,00, mas para aqueles que não possuem uma renda mínima de subsistência é insuficiente para deixar as ruas.

Esse foi o caso de Regina*, 34 anos, mãe de 4 filhos e gestante de sete meses.  Regina passou a receber o Benefício Eventual durante a pandemia, mas só conseguiu abrigar dois dos filhos. Por isso, se manteve nas ruas com as crianças menores para tentar conseguir meios de subsistência.

O caso, que nos foi relatado pela assistente social Sandra, foi notificado à Secretaria de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre), que negou a possibilidade de abrigá-la por ser beneficiária do Benefício Eventual, mas garante que mantém um acompanhamento mais intensivo de Regina pelo serviço de abordagem do órgão e o Conselho Tutelar.

Analista de direito da Defensoria Pública, Lucas Sampaio é outro que confirma a variedade de situações envolvendo as pessoas em situação de rua e o aumento do número de homens e mulheres que passaram a utilizar as ruas como estratégia de sobrevivência. “É possível ver, em uma análise fática, empírica mesmo, que a população de rua de Salvador aumentou bastante durante a pandemia. Até porque, o que a gente entende como população de rua não é só a pessoa que não tem uma casa. São os trabalhadores informais de rua que tiram seu sustento dela, são as pessoas que estão abrigadas em instituições da prefeitura e, finalmente, são as pessoas que têm casa e usam a rua como estratégia de sobrevivência. Todos esses públicos aumentaram durante a pandemia”, disse o analista, durante atendimento do Núcleo Pop Rua na Estação Aquidabã.

Estatísticas sobre pessoas em situação de rua

O último censo nacional da população em situação de rua, realizado em 2008, aponta que Salvador contava com 4 mil pessoas nessa condição. De acordo com o documento, elas estavam nas ruas por conta de problemas familiares (48,4%),  álcool e outras drogas (37%), desemprego (24,8%) e perda de moradia (11,6%).  As informações mais atualizadas com relação a essa parcela da população são de 2020, do Censo Suas realizado pelo IPEA. Ele aponta que, até agosto daquele ano, havia 8 mil pessoas em situação de rua na capital baiana.

Contudo, os números representam apenas aqueles que deram entrada no CADÚnico. Mas devido à falta de documentos, muitas pessoas em situação de rua não possuem cadastro no sistema do governo. Esse, inclusive, foi um dos motivos pelos quais elas não tiveram acesso aos programas de transferência de renda criados durante a pandemia, como o auxílio emergencial e o Salvador por Todos.

Em 2017, uma pesquisa promovida pelo Projeto Axé, UFBA e Movimento Nacional da População de Rua estimou que naquele ano existiam entre 14 e 17 mil pessoas em situação de rua na cidade de Salvador. A estimativa foi apresentada no “Seminário Cartografias dos desejos e direitos: Quem são as pessoas de rua, afinal?”, que contou a parceria da Defensoria do Estado da Bahia.

A pesquisa foi realizada entre janeiro e novembro de 2017, e estimou-se que existem entre 14.513 e 17.357 pessoas em situação de rua na cidade de Salvador, e destes, 25,7% são crianças , adolescentes e jovens. Os dados foram obtidos a partir de uma amostra estratificada obtida em decorrência do processo da pesquisa –Cartografias dos desejos e dos direitos: Mapeamento e contagem da população em situação de rua na Cidade do Salvador, Bahia, Brasil. 

*Nome fictício para preservar a identidade