COMUNICAÇÃO

Seminário Tornar-se Negra resgata conceitos de ancestralidade e bem viver para propor novos olhares sobre questões sociais e identitárias

23/11/2019 1:52 | Por Tunísia Cores DRT/BA 5496

Abertura do evento deu destaque ao recém-criado Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial da Defensoria baiana

Nesta sexta-feira, 22, o auditório da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia – Esdep foi palco de discussões sobre a formação de identidade durante o seminário Tornar-se Negra: trajetórias interseccionais de luta e resistência. Mediado pela defensora pública Vanessa Nunes Lopes, coordenadora adjunta do recém-criado Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial, o debate inicial resgatou conceitos como a ancestralidade e o bem viver, o qual propõe lançar novos olhares sobre a organização social e ressignificar questões caras, neste contexto, à população negra.

“Nós, enquanto povo negro e mulheres negras, não queremos simplesmente sobreviver ao que essa sociedade nos coloca. Nós temos uma nova proposta de pensar essa sociedade que só pode ser transformada a partir dos saberes do nosso povo, da nossa comunidade”, afirmou a doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Nzinga Mbandi.

Desde a infância em contato com a sua identidade, a doutoranda destaca que tal reconhecimento é importante porque, para além de ser uma mulher negra, é esta identidade que a faz entrar e ser percebida nos espaços que frequenta de maneira diferente diante de um país em que o racismo é estrutural. Mbandi explica que a expressão “bem viver” é indígena, e que este também é um segmento da população que precisa de representação nos espaços. No entanto, é resgatado pela Marcha das Mulheres Negras por necessidade de ressignificação da sociedade.

“O feminicídio diminuiu 9,8% entre as mulheres brancas, mas foi de 54,2% entre as mulheres pretas. Estão acabando com as nossas mulheres e com a nossa ancestralidade. A gente precisa do bem viver porque, no índice de mortalidade materna, as mulheres negras chegam a 62,8% em razão de violência obstétrica, do racismo que existe nos equipamentos de saúde”, afirmou, Mbandi.

A questão da ancestralidade e da identidade negra foi trazida pela artista visual e designer de moda, Carol Barreto, a partir do diálogo entre três pilares em principal: a moda, o ativismo e a performance. “A minha ancestralidade compreende o conceito de arte diferente do entendimento do branco”, afirmou. A partir disso, Barreto, que também é docente da Universidade Federal da Bahia – UFBA, trouxe questionamentos aos presentes que também orientaram o seu trabalho e trajetória.

“Como podemos pensar a moda como um campo de atuação política? Quando pensaremos nas minorias de representatividade? Focando nos processos criativos e nas metodologias de planejamento de coleção em design de moda, como se materializam as demandas políticas por meio da artisticidade da moda?”, questiona. E, ressalta, considerando que a condição de subalternidade este associada à negritude, é preciso produzir imagens positivas de mulheres negras e com mulheres negras.

Doutor em Ciências Sociais, o antropólogo e babalorixá Rodney William acredita que a construção da identidade está ligada não apenas à tomada de consciência, mas também ao momento em que o outro nos reconhece enquanto negro. “A partir daí se dá a construção do fortalecimento. Não só às bases que a gente recorre e onde buscamos a força para resistir à opressão que sofremos, mas também quais são as referências que vão nos ajudar a desconstruir essa condição social que é tão complicada e, ao mesmo tempo, nos desafia a uma sociedade mais justa”.

Políticas afirmativas e potencialidades

O debate acerca da construção da identidade foi tratado a partir do viés acadêmico pela doutora em Antropologia Social e mestre em Ciências Sociais, Cristiane Souza, durante o tempo em que lecionou na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab.

Souza destacou que acredita na educação como espaço potencial de transformação, a partir das inquietações e experiências, e destacou a política de cotas como uma forma de proporcionar o acesso a novos encontros e espaços. “Eu não posso olhar a minha experiência enquanto docente na universidade sem olhar para os meus interlocutores. A gente está ocupando um espaço importante e necessário. Estudantes negros que chegam pelas cotas têm nos colocado desafios com muita potência quantitativa e qualitativa”, afirmou.

A docência, para Cristiane, vai além da transferência em sala de aula. Refere-se à articulação dos saberes como uma forma diretiva de pensar relações dentro e fora do espaço escolar. “A nossa preocupação é com a excelência dos nossos estudantes e com a excelência da nossa prática, pois não podemos estar lá sem disputar um outro projeto de instituição, de conhecimento e um outro projeto de civilidade.

Mediadora, Vanessa Nunes teceu comentários não apenas sobre a potencialidade do corpo negro, mas também sobre a intelectualidade. “A gente também é uma potência intelectual. Não porque a gente está inventando a roda, mas porque a nossa ancestralidade sempre produziu conhecimento e sempre foi farol para o mundo. Então, que a gente possa usar esse lugar de fala para compartilhar com os nossos”.

Igualdade Racial na Defensoria

As iniciativas voltadas para a inserção de pessoas negras em espaços e instituições como a Defensoria pública foi destacada pelo defensor público geral, Rafson Ximenes, em seu discurso de abertura. Entre elas, citou a realização do concurso para defensor e defensora com vagas reservadas aos candidatos negros e as respectivas consequências positivas para a instituição.

“A partir deste momento passou a existir um grupo que, espontaneamente, começou a levantar a bandeira e fazer a luta pela igualdade racial dentro da instituição. E a apontar para a gente que também que existe racismo institucional, que existem situações racistas que ninguém percebeu na Defensoria Pública e que estamos vendo agora. Acolhemos esse grupo e, no dia 20 de novembro, foi formalmente criado o Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial, que vai ajudar a Defensoria a pensar estrategicamente políticas de combate ao racismo”.

Ouvidora-geral da DPE/BA, Sirlene Assis, também comemorou a criação do GT, ressaltou a crescente participação da Ouvidoria Cidadã na instituição. “A atual gestão tem sido uma grande parceira nas nossas lutas e nos convoca para os processos de construção”, afirmou Sirlene, que destacou ainda a importância de enegrecer o sistema de Justiça para ampliar a representação dos negros.

Presidenta da Unegro Nacional, Ângela Guimarães elogiou a existência de uma ouvidoria externa na DPE/BA e as pessoas que estão à frente da gestão. “O fato de a Ouvidoria Cidadã desta Defensoria só ter sido ocupada por aquelas sujeitas histórias que nos queremos tratar aqui nesta mesa, as mulheres negras, as mais impactadas pelo entrecruzamento de opressões, desigualdades e opressões”, afirmou.

Para a secretária estadual de Políticas para as Mulheres, Julieta Palmeira, tais opressões são componentes essenciais de dois elementos construtores da sociedade brasileira: o machismo e o racismo estrutural. “Tão estrutural que desumaniza as pessoas. Aí está a ideia que existir tem a ver com resistir, em relação às mulheres negras, que hoje protagonizam toda uma transformação em nosso país. Toda essa mobilização questiona a sociedade capitalista e patriarcal que se assenta sobre elas. O protagonismo está com as mulheres negras e que bom, pois mostra que há muito a conquistar”.

Processo gradual de consciência

Transfeminista negra e ativista do movimento LGBTQI+, Selenna Ramos acredita que se reconhecer como negra, perceber questões como a ancestralidade, é um processo gradual que surge a partir de reflexões sobre os espaços ocupados e sobre como o estado, por exemplo, viabiliza a construção de políticas públicas. “É necessário que a gente a use elementos como a interseccionalidade para poder pensar nessa encruzilhada de marcadores, não hierarquizar a violência e sim identificá-la para que possamos combater o sistema de opressão”, afirmou.

Esta parte do seminário foi mediada pelo defensor público João Lucas Neto e contou com contribuições do historiador e mestrando em História, Dudu Ribeiro; do mestre em Direito e professor da UFBA, Samuel Vida; e da socióloga e doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos, Vilma Reis.