COMUNICAÇÃO
“Tudo na minha vida mudou” – diz Ana Cruz, que passou por depressão e já não consegue trabalhar em delegacia após assassinato do filho ativista
De cabeça erguida, dona Ana denuncia a violência policial, mas sofre com depressão, ansiedade e relata o quanto é difícil ficar exposta ao contato com policiais no ambiente de trabalho
Aguerrida, “retada”, mãe de três. Ana Maria Cruz, 55, teve a vida virada de cabeça para baixo quando o seu filho do meio, Pedro Henrique, foi executado em dezembro de 2018, na cidade de Tucano, interior da Bahia. Concursada pela Polícia Civil, ela atuava normalmente como escrivã na 9ª Delegacia de Polícia, na Boca do Rio, em Salvador, até o fatídico dia em que tudo mudou.
Mesmo com toda a coragem de denunciar e cobrar o desfecho das investigações pela morte do filho, ela relata o quanto é difícil ficar exposta ao convívio com os policiais. O cargo de escrivão de polícia, além de registrar boletins de ocorrência, flagrantes, ouvir vítimas/partes envolvidas nos crimes e lavrar atos dos inquéritos policiais, também atribui o ofício de acompanhar a autoridade policial quando necessário.
Após a morte de Pedro, Ana Maria (dona Ana) foi diagnosticada com sintomas de intensa depressão, insônia, anedonia (perda de prazer em fazer atividades que antes considerava agradáveis) dificuldade de concentração, entre outras. Afastou-se quase dois anos do trabalho e entrou com um processo administrativo na Polícia Civil para ser transferida, alegando não possuir condições psicológicas de continuar trabalhando na delegacia.
O laudo médico orienta que haja a relotação, pois no local ela “presencia diversas situações que envolvem violência urbana de forma direta, que são intensamente deletérias ao seu quadro psíquico”. O convívio na delegacia traz à tona os piores dias da sua vida. No pedido de transferência, ela assume o desconforto e o sofrimento psíquico.
“Já aconteceu de eu abandonar a delegacia no meio do trabalho e vir embora para casa. Já aconteceu de estar chegando, ver uma viatura e voltar. Minha vida mudou muito. Antes eu dava muitas horas extras como escrivã – e nos extras há contato direto com os policiais – tive uma queda brutal na minha renda”, desabafou dona Ana.
Segundo ela, ainda é muito difícil acordar e imaginar-se indo ao local. Por causa da pandemia, o contato com a polícia ostensiva diminuiu, já que os flagrantes estão acontecendo apenas na Central de Flagrantes Polícia Civil, na região do Iguatemi. Mas revela estar aflita com o futuro.
Esperança de cura
A solicitação de transferência foi indeferida pela 9ª Delegacia, afirmando haver grande volume de trabalho e que só poderia ser feita por meio de permuta (ou seja, precisaria trocar o local de trabalho com outro escrivão). Ana buscou a Defensoria Pública da Bahia para tentar ser realocada. Diante da situação especial dessa mãe, a instituição está preparando uma ação de obrigação de fazer para tentar resolver o problema, embora ainda acredite em uma reconsideração pela Polícia Civil.
O trauma da perda de um filho de uma forma tão violenta é uma cicatriz difícil de se livrar, mas para dona Ana, a sua esperança de cura está na escola. O ensino do Português no turno da noite diminui um pouco o processo de ansiedade pelo qual está passando. Ana torce para que a pandemia acabe logo para poder voltar ao contato com os seus alunos.
“Vai ser minha terapia, minha cura. Estou louca para voltar às aulas, sair um pouco desse ambiente pesado (de delegacia). A escola é assim para mim. Sempre ao chegar na escola à noite, eu esquecia tudo, o dia difícil que eu tive”, acredita.
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Mais que mãe e filho
O amor e a paz a qual o ativista Pedro Henrique tanto falava estava presente no seu dia a dia, principalmente no seu relacionamento com a mãe – “a pessoa que Pedro mais amava no mundo”, como afirma um comentário amigo no Facebook.
A relação era, além de tudo, de amizade. “Ele me apresentava para os amigos assim: ‘aqui é minha mãe, minha irmã, minha brother’. A gente era muito próximo mesmo, apesar de ele estar morando lá (em Tucano). A gente se falava todos os dias, todos os dias ele ligava para o meu trabalho. Tinha uma delegada que trabalhava comigo na época que até já conhecia a voz de Pedro”, lembra dona Ana.
Segundo ela, o filho ensinou-a gostar de reggae. “Quando a gente saía junto para grandes shows, ele dizia: ‘tá vendo esse mundo de gente? Eu sou a única pessoa que veio com a mãe’ e dava risada”, recorda.
Além do reggae, havia em comum o gosto pelo cangaço, que, segundo Ana, é de família. Ela contou que Pedro colecionava livros, filmes e documentários sobre lampião e já havia separado espaço para uma homenagem cravada na pele. “Estou deixando as costas limpas porque vou fazer vou fazer lampião e Maria Bonita em homenagem a você e ao meu pai”, dizia. Pedro era artista e tatuador.
“Existe um elo unindo nossas almas e este jamais será rompido”, declara dona Ana.
O ideal de Pedro era o amor e a paz pregados pelo Rastafári, movimento religioso judaico-cristão originado na Jamaica entre negros camponeses descendentes de africanos escravizados, que prega a paz de “Jah” (Deus/Jeová). Tem como um dos maiores representantes o cantor Bob Marley, falecido em 1981, vítima de um tumor no cérebro.
“Amou muito e na mesma intensidade foi (e ainda é) amado por mim, pelos seus amigos, colaboradores e familiares. Vi amor no olhar das pessoas que ele ajudava sem sequer conhecê-las”, comenta dona Ana.
Mesmo no eterno luto de uma mãe que tinha uma conexão verdadeira com o filho, ela dispensa os pêsames e diz que “só aceita os parabéns”, por ter tido um filho como ele. “Pedro não tinha apelidos, mas alguns amigos próximos o chamavam carinhosamente de Pedrinho. Não tinha inimigos, com exceção daqueles que o tratavam pejorativamente de ‘rasta’. Era, sim, um rastaman, um homem com ideais rastafári. Um revolucionário, um guerreiro de dreadlocks, cuja luz assustava e continua assombrando aqueles que vivem na escuridão”, afirma com veemência.
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