COMUNICAÇÃO
Um grito pela paz e pelos direitos humanos silenciado – Quem foi Pedro Henrique?
Adepto da religião/filosofia rastafári, o ativista de direitos humanos realizava caminhadas da paz anualmente em Tucano/BA e distribuía cestas básicas para famílias carentes
“Torço para não ser narrativa sobre o assassinato de minha pessoa. Qual e quando será o próximo atentado que me vitimará?”, escreveu Pedro Henrique Santos Cruz Souza em seu Facebook menos de dois meses antes de sua morte.
Ele foi assassinado por três homens encapuzados, com 8 tiros calibre 38 na cabeça e pescoço, em Tucano (BA), no bairro Nova Esperança que, por uma infeliz coincidência, também é conhecido como Matadouro. A vítima estava na cama quando o crime aconteceu, às 4h da madrugada de 27 de dezembro de 2018.
Quase em tom premonitório, Pedro publicou essas palavras em 31 de outubro de 2018, data em que completava seis anos da abordagem policial violenta que sofreu e que despertou sua militância pelos direitos humanos na cidade de Tucano, no interior da Bahia. Na época, o fato também foi reportado publicamente em seu perfil no Facebook.
Pedro sempre achou que seria assassinado por causa de suas opiniões políticas, conforme relatou a sua ex-companheira, que dormia com ele no dia do crime e presenciou toda a brutalidade. Única testemunha no caso, ela reconheceu, durante o inquérito policial, três suspeitos de assassinarem seu companheiro, policiais que atuam em Tucano e região – a investigação ainda está em curso.
De acordo com a defensora pública Valéria Teixeira, que acompanha os desdobramentos das investigações da execução do ativista social, ele tinha uma postura crítica em relação à conduta de alguns policiais. “Não eram todos, mas alguns policiais militares de Tucano. Pedro denunciou várias vezes ao Ministério Público, isso não é uma opinião, é um fato”, destacou. Para a defensora, a taxa de resolução dos casos de homicídio, que no Brasil não passa de 8%, é um grande dificultador.
“Basta citar o caso de Marielle, que ainda não foi elucidado quem mandou matá-la. Se mesmo um homicídio com repercussão nacional, com toda conjuntura política por trás, ainda não foi resolvido, a dificuldade é ainda maior no interior da Bahia”, explicou.
Grande parte daqueles que recebem a notícia de um assassinato brutal tem a reação imediata de não aceitar a dura realidade de um ato covarde e de tamanha injustiça. E buscam algo que a justifique, como a lei do retorno: ‘se morreu dessa forma, deve ter feito algo’.
A negação como forma de escapar de uma verdade desconfortável é algo bem comum. E no caso de Pedro Henrique não foi diferente. Mas as acusações e suposições de que o jovem não era honesto entristecem muito a sua família.
“Pedro tinha tudo o que um ser humano precisa pra viver feliz: uma família estruturada que lhe proporcionava um ambiente saudável, onde pôde crescer e tornar-se um homem do bem, tinha amigos, segurança, conforto, condições para se divertir, viajar, fazer o que quiser. Mas não sentia-se feliz nem à vontade vendo o próximo passar por privações, ou, principalmente, sendo injustiçado”, explica dona Ana.
“Digo para algumas pessoas ‘perdi um primo’, explico como ele foi brutalmente tirado de nossas vidas e elas perguntam: ‘ele era envolvido?’. Sim, ele era envolvido! Com a paz e a coragem de ser uma pessoa extraordinária, que fazia o bem sem olhar a quem. Que mesmo sabendo que o mundo não mudaria por suas ações, dava o melhor de si”, destacou Íris Portella, prima de Pedro.
Mãe que denunciou execução de Pedro Henrique sofre com ataques judiciais de policiais militares
Marielle Franco da Bahia
Ana Maria acredita que a morte de seu filho tem a ver com a sua militância a favor dos direitos humanos e contra a truculência policial, que começou quando foi agredido, em outubro de 2012, durante abordagem policial. Levou tapas, golpes de cassetete, pontapés, empurrões, coronhada e lesionou-se.
No dia seguinte, denunciou a violência sofrida à delegacia de Tucano. A delegada indiciou os policiais pelo crime de tortura, por meio do Inquérito Policial nº. 204/2012. Posteriormente, em audiência no Fórum de Tucano (também denunciada por Pedro na rede social) em agosto de 2013, o crime foi reduzido para lesão corporal e abuso de autoridade. Os policiais foram obrigados a pagar multa, conforme consta na apuração feita no inquérito do Ministério Público.
Desde a agressão, Pedro organizava a Caminhada da Paz anualmente em Tucano, em protesto contra a violência e o autoritarismo policial. Tornou-se uma das principais manifestações populares da cidade. Dona Ana relatou à polícia que, por causa disso, era perseguido como inimigo dos policiais e que a marcha era considerada pela corporação local como um movimento contra a PM.
Em outubro de 2018, dois meses antes de sua trágica morte, Pedro denunciou supostas abordagens policiais abusivas no seu bairro. Pouco tempo após a denúncia, a polícia entrou na sua casa, encontrou cinco pés de canabbis plantados no quintal e o conduziu à delegacia de Euclides da Cunha. Mas, em audiência de custódia, o juiz da comarca de Euclides da Cunha anulou o auto de prisão em flagrante, desclassificou a acusação de tráfico, reconheceu Pedro como consumidor da planta e concedeu o alvará de soltura a ele, que foi imediatamente posto em liberdade.
O próprio Pedro ostentava o adjetivo “maconheiro” como forma de resistência, não via como algo depreciativo, pois militava também em favor da descriminalização da maconha. Era adepto do rastafarianismo, movimento religioso e político que prega paz, simplicidade, amor e que usa a planta para meditação, para manter a mente limpa e chegar a um estado avançado de relaxamento. De acordo com sua mãe, Ana Cruz, ele tinha alguns pés no quintal de casa para consumo próprio. A ideia seria não alimentar o tráfico, nem ficar à mercê de um sistema que ele mesmo criticava.
Mas, segundo a mãe, a injustiça tirava Pedro do sério, o enfurecia. “Foi nessa busca diária, ininterrupta e quase suicida por justiça que Pedro esbarrou na muralha da maldade, da truculência, da hipocrisia, do preconceito, da intolerância, e da covardia de assassinos cruéis e sanguinários”, lamentou.
A madrugada de terror
Conforme relato oficial dos familiares em documento da Polícia Civil, os três homens que assassinaram Pedro em Tucano não sabiam exatamente onde ele morava. A escalada da violência começou dois dias após o natal de 2018, por volta das 3h da madrugada, quando abordaram o genitor da vítima, José Aguiar (70), em sua própria residência.
Colocaram uma lanterna forte no seu rosto, ameaçaram e forçaram um pai a entregar o próprio filho à morte. Embora José tenha dito que Pedro estava em Salvador, os três encapuzados sabiam que estava em Tucano, então retiraram-no de sua residência e o forçaram a levá-los até a casa de Pedro, que morava próximo. Ao chegar, ordenaram que retornasse à sua residência e o pai voltou correndo para pegar o celular, filmar a ação e tentar buscar ajuda.
Enquanto isso, os algozes arrombaram a porta e assassinaram Pedro, ao lado da companheira, que assistiu à traumática tragédia deitada enquanto um dos três a imobilizava pisando com um coturno preto em seu rosto. Momentos antes de atirarem, conforme ela, os encapuzados deram voz de prisão.
Ainda antes de fugir, roubaram os celulares dele e do pai, que foi abordado novamente enquanto retornava aflito de sua casa à cena do crime.
O ativista – O legado da Caminhada da Paz
Além de protestar contra a violência, principalmente a praticada pelo Estado, os eventos realizados por Pedro tinham um cunho social – ele trocava camisetas por alimentos não perecíveis, que eram revertidos em cestas básicas e distribuídas para famílias carentes. As seis caminhadas da paz organizadas por ele em Tucano beneficiaram, em média, 44 famílias com cestas básicas em cada uma delas, exceto a primeira.
E os eventos sempre traziam a cultura da paz como ponto-chave. A trilha sonora, regada com muito reggae, claro: Bob Marley, Edson Gomes, Nengo Vieira e diversos artistas que as letras das músicas falam contra “o sistema” e pregam o amor.
Pedro falava abertamente e com naturalidade sobre assuntos polêmicos na sociedade, como a descriminalização da maconha. Não gostava de ser taxado de “usuário”, era “maconheiro” assumido, como ele mesmo já relatou. Após seu assassinato, foi feita ainda mais uma caminhada, em 2019 – dessa vez em tributo à sua morte.
De acordo com dona Ana, os eventos foram cessados por conta da pandemia do coronavírus, para evitar que os participantes ficassem expostos ou contaminassem outras pessoas. Mas após esse momento passar, as caminhadas retornarão e serão como um memorial para o filho: o legado que Pedro deixou.
I Caminhada da Paz (2013) – “Se todos derem as mãos, quem sacará as armas?”
II Caminhada da Paz (2014) – “O grito dos excluídos”
III Caminhada da Paz (2015) – “A paz é irmã da justiça”
IV Caminhada da Paz (2016) – “Caminhada pela vida”
V Caminhada da Paz (2017) – “Reggae a vida com amor”
VI Caminhada da Paz (2018) – “Reféns da violência”
VII Caminhada da Paz (2019) – “Você não está sozinho (Pedro Vive – um grito de paz calado pela covardia)
Soldado da paz
Com a sua forte influência do reggae e do ativismo não podia ter homenagem melhor: Pedro virou música. “Soldado da Paz” (disponível no Youtube), da banda Chalize, mostra o legado de uma luta pacifista que agora ecoa mais potente nos cidadãos que clamam por paz em Tucano.
Pedro tu nunca foi pedra
Pedro tu sempre foi flor
Hoje, tu és a semente dos soldados da paz que em Tucano brotou
Logo, tu nunca fez guerra
Como toda criança, aprontou e brincou
Hoje, tu és homem grande
E aqui dentro de nós sua voz ecoou
Refrão: Vou caminhar, vou encarar, não vou desistir
No buraco do vento, no espaço da vida, eu vou resistir
Vou caminhar, vou encarar, não vou desistir, não
De agora em diante sua voz ecoa dentro de mim
Letra: Gerson Nunes
Música: Banda Chalize
Vocal e Guitarra: Oliver
Guitarra: Sérgio Pita
Contrabaixo: Marcus Vinicius
Teclado: Uelder Câmara