COMUNICAÇÃO

VOZES POP RUA – Consultório na Rua leva atendimentos na área de saúde e esperança de vida à população em situação de rua

22/10/2020 11:51 | Por Tunísia Cores - DRT/BA 5496

Entrevistada da Vozes Pop Rua, Vânia Mota é assistente social e atua no Consultório na Rua e integra equipe multiprofissional que desenvolve ações integrais de saúde junto à essa população

Mulher preta, cis, mãe e assistente social são apenas algumas das características que definem a assistente social Vânia Mota, que atua no Consultório na Rua, uma equipe multiprofissional que desenvolve ações integrais de saúde frente às necessidades da população em situação de rua. Graduada em Serviço Social há um ano, Vânia destaca que a sua familiaridade com a população em situação de rua é mais antiga – enquanto estagiária da Defensoria Pública da União, atuou no Grupo de Trabalho da População em Situação de Rua.

Atual entrevistada da série Vozes Pop Rua, Vânia Mota afirma que refletir sobre o agravamento das desigualdades gerado pela pandemia gera receios sobre o futuro. Sua entrevista também aborda a importância do acesso ao Consultório na Rua – e consequentemente ao Sistema Único de Saúde, a integração da iniciativa com instituições e órgãos da rede de apoio, além de comentar sobre os impactos socioeconômicos da pandemia sobre a sociedade, os trabalhadores e as pessoas em situação de rua.

 

O que é o Consultório na Rua e quais atividades tem desenvolvido antes e durante a pandemia na rua?

O Consultório na Rua – CnaR é uma política pública do Sistema Único de Saúde – SUS, inserida na Política Nacional de Atenção Básica – PNAB no ano de 2011, uma conquista fruto da luta dos movimentos sociais com forte defesa e articulação do Movimento Nacional População de Rua.

Os CnaR são equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integradas de acordo com as necessidades das pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social com vínculos fragilizados ou interrompidos. As equipes podem ser formadas por três modalidades e conter assistentes sociais, psicólogos, médicos de Saúde da Família, terapeutas ocupacionais, enfermeiras, técnicos de enfermagem, redutores de danos, educadores físicos, dentistas e auxiliares de Saúde Bucal.

Os consultórios compõem uma equipe da atenção primária à saúde, atuando de forma itinerante no distrito sanitário de sua abrangência levando às pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social nos territórios a escuta qualificada; orientação; atendimento médico e psicossocial; encaminhamento para a rede especializada na saúde e na assistência social; visita domiciliar; busca ativa; distribuição de insumos (águas, preservativos, máscaras, álcool em gel); investigação, acompanhamento e tratamento de doenças infectocontagiosas; acompanhamento de pré-natal e planejamento familiar; além da regularização do calendário vacinal, administração de medicamento e curativos.

Devido ao período pandêmico vivenciado na Bahia, foi aberta uma licitação emergencial no município de Salvador para os Consultórios na Rua com o intuito de traçar um planejamento de cuidado ao enfrentamento à Covid-19. Através do projeto Girassóis, as equipes passaram a ser geridas pelo setor privado. Houve a implementação de dois dispositivos do CnaR, além do recebimento de novos profissionais em três equipes, totalizando cinco equipes do Consultório na Rua em Salvador.

Com a implementação do projeto, além de seguirem proporcionando os cuidados com a saúde na rua, as equipes do CnaR implementaram novos manejos de cuidado contra a Covid-19, tais como: investigação de síndrome gripal, teste rápido e monitoramento da doença nas pessoas em situação de rua, matriciamento as Unidades de Acolhimentos, rodas de conversa para prevenção contra o coronavírus, campanha de vacinação na rua contra a gripe de influenza H1N1, distribuição de insumos como máscaras e álcool em gel.

Orientados por uma perspectiva de clínica ampliada e de cuidado intersetorial, os Consultórios na Rua se articulam com os demais dispositivos da rede para ofertar às pessoas em situação de rua um cuidado ampliado e compartilhado, voltado para todas as áreas de interesse do usuário. Tais como: os Centros de Referência em Assistência Social – CRAS, os Centros de Referência Especializados em Assistência Social – CREAS, Centro Pop, Projeto Axé, Programa Corra pro Abraço, Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, a Defensoria Pública da União na Bahia, Núcleo de Ações Articuladas para População em Situação de Rua – NUAR, Unidades de Acolhimento, Ministério Público, Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, UPA’s, Obras Sociais Irmã Dulce – OSID, entre outras intuições.

 

Como sua trajetória de vida a levou a fazer parte da equipe e qual seu papel neste momento? 

As opressões estruturais que atravessam meu corpo de mulher preta e periférica sempre me levaram a me posicionar em movimentos sociais com fundamentos antirracistas. Assim, através do ativismo social me inseri ao lado do movimento da população em situação de rua, no ano de 2017, período no qual estagiava no setor de saúde da Defensoria Pública da União (BA) e me integrei também, enquanto estagiária de Serviço Social, na atuação do Grupo de Trabalho da População em Situação de Rua – DPU, durante dois anos. Nesse período de formação, construí intervenções dentro da DPU-BA que visibilizassem as pessoas em situação de rua e a atuação ética da Defensoria e materializei o primeiro projeto de intervenção do Serviço Social para a atuação do GT POP RUA – DPU.

Materializei também uma pesquisa social de conclusão de curso, a qual abordou como as opressões estruturais da sociedade capitalista colocam os corpos das feminilidades na situação de rua em maior de contexto violência. Tais opressões de raça, classe, diversidade de gênero e sexualidade são a combustão para a ida dessas pessoas para a situação de rua. A pesquisa social citada anteriormente é intitulada “A situação de rua das Marias, através dos olhos ancestrais do interseccionalidade” e parte de uma perspectiva decolonial do pensamento de autoras negras.

Enquanto assistente social, eu atuo na defesa intransigível da reafirmação de direitos das pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade social, contribuindo com uma postura ética-política, teórica-metodológica, técnico-operativa. Demarco que todo o cuidado com as pessoas em situação de rua precisa estar atrelado a uma leitura histórica e crítica sobre como as opressões estruturais atravessam essas vidas, sobre como o racismo é a estratégia base do sistema capitalista para que esses corpos permaneçam nessas condições.

Defendo que as políticas públicas brasileiras precisam ser tomadas por uma reparação histórica de um povo que, há cinco séculos, encontra-se negligenciado. Defendo que a construção das políticas públicas precisa ter, enquanto princípio, a diversidade étnica, a sexualidade e a economia, a luta antirracista, adentrando assim as especificidades da população que ocupa os espaços públicos como forma de sobrevivência, convivência ou moradia, possibilitando a efetivação da transformação social em modo de relações justas.

 

O que mudou no território em que atua e como você avalia os impactos destas mudanças para a população de rua?

Ter uma equipe de atenção primaria à saúde, que materializa um cuidado integral a uma população historicamente invisibilizada e excluída do SUS e de políticas públicas da Assistência Social, tem transformado efetivamente muitas vidas.

A intervenção multiprofissional intercruzada por vários saberes tem se materializado em projetos de cuidados horizontais e singulares para cada usuário. Isto permite que as pessoas que acessam esses dispositivos possam desenvolver a sua autonomia, possibilita o acesso aos direitos essenciais enquanto construção de dignidade.

Os avanços ainda são pequenos para enfrentar a profundidade das expressões das questões sociais, mas o Consultório na Rua é um dispositivo importante na micropolítica que atinge de certa forma a macropolítica.

 

Há um relato ou situação mais marcante no seu trabalho na rua nesse contexto de Pandemia que você possa compartilhar? 

Cada vida encontrada na situação de rua traz para a equipe sua marca, sua identidade, sua singularidade. Todos os encontros são marcantes por que são perpassados de vida, afeto e resistência pelas suas trajetórias.

O que tem mais me marcado é a reafirmação das pessoas que se encontram nessa condição, sobre a perspectiva do cuidado e dos afetos dos seus companheiros da rua, da família que se constrói na maloca e do valor desses pares nas suas existências.

Outro ponto bem relevante são as estratégias de liberdade feminina para se movimentar pelo mundo, o qual carrega os corpos dissidentes, corpos com signos de resistência e luta, rompendo com uma lógica silenciadora do controle.

 

Quais as suas expectativas e perspectivas para um novo normal no futuro e pós-pandemia?

Com o avanço do capitalismo e a restruturação da sua crise cíclica nesse projeto de Estado neoliberal e conservador, as perspectivas do cenário conjuntural no Brasil não são as mais agradáveis. As políticas públicas estão sendo desmanteladas e, com isso, as desigualdades sociais e históricas no Brasil se aprofundam. A classe trabalhadora, formada majoritariamente por pessoas afrodescendentes, sem recursos monetários e marginalizadas socialmente, encontram-se desamparadas na lógica deste Estado mínimo.

O avanço da pandemia no Brasil pressionou o Estado para que tomasse medidas sociais emergentes a fim de conter a proliferação do vírus. Nesse contexto, foram abertas licitações emergenciais no município com foco nas pessoas em situação de rua, voltaras para políticas públicas da Assistência Social, como as Unidades de Acolhimento Institucional, e da Saúde, a exemplo dos Consultórios na Rua. Ambas estão encerrando as atividades do período de seis meses e essa fragilização na política reflete em uma maior desassistência social.

O Estado não investiu de modo comprometido com a garantia e manutenção da renda mínima para as pessoas em contexto de vulnerabilidade e isso acelerou a ida de muitas pessoas para a situação de rua. O auxilio emergencial proposto não contemplou toda a população que dela necessitava – e ainda foi reduzido à metade na sua prorrogação até dezembro. É importante enfatizar que o cadastro [de beneficiários] do bolsa-família encontra-se suspenso até 2021, então muitas pessoas não estão tendo acesso a nenhuma transferência de renda mínima direta do Estado.

É importante frisar que o valor do auxílio aluguel previsto pela Assistência Social não garante moradia e nem a manutenção de uma casa. As altas taxas da inflação na alimentação, no consumo de água/luz e gás se tornaram fortes fatores de fragilidade para que famílias voltassem a ocupar as ruas. Os espaços de alimentação popular são escassos, além de não atenderem à imensa demanda da população vulnerabilizada.

Outra questão são as altas taxas de desemprego e um grande aumento dos trabalhos informais precários, que não garantem proteção social e nem direitos trabalhistas, fragilizando ainda mais a relações trabalhistas.

Refletir sobre cada desigualdade que a pandemia aprofunda é ter receio do que será o futuro. Como as pessoas irão sobreviver a essas estratégias genocidas da morte facetada? É uma dor engasgada em um nó! Acredito que a luta coletiva é o caminho para a transformação social justa. Posicionar-se politicamente em articulação com os movimentos sociais é o caminho de enfrentamento aos desmontes sociais.

 

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Produção: Tunísia Cores e Jész Ipólito
Produção Gráfica: Antonio Félix
Edição e revisão: Arthur Franco e Vanda Amorim