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Ameaças à comunidade nativa da ilha de Boipeba leva Ouvidoria da Defensoria e outras instituições a região para apurar caso

Por Júlio Reis - DRT/BA 3352

A ameaça de verem destruídas suas barracas de praias, usadas como um dos principais meios de sustento, preocupa os trabalhadores e famílias nativas da ilha de Boipeba que desenvolvem suas atividades nas praias de Itacimirim, Cueira e Moreré. Eles relatam que no início de setembro, sem nenhum documento oficial que justificasse ou atestasse a legalidade da intervenção, policiais estiveram na área para demolir as barracas.

“Nós não permitimos que isso ocorresse. Eles queriam até mesmo retirar os clientes que almoçavam na barraca de um colega para derrubá-la. Foi muito atrevimento. Eu pergunto que tipo de ação é esta? É muito triste saber que nós estamos hoje brigando para trabalhar”, relatou Benedito Paixão dos Santos, homem negro, 46 anos, durante reunião de moradores nativos da ilha de Boipeba junto ao Grupo de Trabalho Interinstitucional do Baixo Sul, liderado pela Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), na última quarta-feira, 15.

O encontro, que ocorreu no Centro Comunitário da Ilha, fez parte de uma agenda de escuta e encaminhamentos do Grupo de Trabalho quanto à situações de violações de direitos humanos, ambientais e de comunidades quilombolas e tradicionais em localidades do território de identidade que reúne alguns dos destinos turísticos mais paradisíacos da Bahia.

Diante dos relatos apresentados pela comunidade, a ouvidora-geral da Defensoria, Sirlene Assis, diz que é preciso realizar mais momentos de escuta e exame da situação buscando construir canais de diálogo para endereçar as situações junto aos órgãos públicos competentes a partir e conforme as necessidades da população nativa local.

“Nós vamos organizar e realizar uma audiência pública e também pretendemos realizar, posteriormente, uma visita técnica a cada parte de Boipeba buscando uma interlocução entre os poderes públicos e a comunidade. Especuladores chegam, ocupam o território e vão impedindo ou cerceando a população local de levar seus modos de vida e gerar sua renda. Está visível um racismo estrutural e ambiental na comunidade que vai levando a violações de direitos”, comentou a ouvidora-geral da DPE/BA.

Conflitos

Embora constitucionalmente pertençam à União, as terras das ilhas de Boipeba e Tinharé (nesta última estão localizadas as famosas praias de Morro de São Paulo, Garapuá e Gamboa) têm sido alvo de muitos conflitos entre grandes empresários, que visam patrocinar empreendimentos imobiliários, e comunidades quilombolas e tradicionais com histórico de ocupação e usufruto das áreas.

Líder da Associação de Barracas Sustentáveis da Ilha de Boipeba, Benedito dos Santos avalia que o conflito ocorre fundamentalmente por uma disputa de controle do território. “A gente está em busca de um pedacinho de Boipeba, de nosso território. Hoje o sol parece sorrir para todos em Boipeba, mas nós, que vivemos aqui desde quando nascemos, não podemos fazer parte deste sorriso? Por que agora vivem a nos dizer que não podemos ocupar uma terra que é nossa?”, questionou.

Para um pescador da região conhecido como Raimundo Siri, que vive em Cova da Onça, a comunidade não tem sido escutada quanto ao seu futuro. “Não existe vida sem território e é do território que a gente vive as nossas vidas. Nós pescadores e pescadoras, nativos da comunidade, somos excluídos do modelo de desenvolvimento pensado pelo município. O que, aliás, não se dá somente aqui, mas em quase todo o país. Precisamos nos articular e nos unir para mudar esta história”, ponderou.

Linha de preamar

Os moradores nativos se queixam também que um empresário, que alega ser o proprietário de vastas extensões de terra que ocupam boa parte do território do litoral da ilha, construiu cercas de ponta a ponta, o que não respeita a legislação ambiental. As cercas foram colocadas no exato limite da preamar (a maré mais alta que o mar alcança). A junção da legislação federal com a baiana proíbe que sejam erguidas qualquer construção antes de 60 metros da preamar em Áreas de Proteção Ambiental, como é o caso de Boipeba.

“A cerca deste empresário está numa proximidade que quando a maré enche, dificulta tanto para os locais como para os turistas passarem. Ela fica praticamente dentro da água. Nessas ocasiões nossas barracas também são atingidas, já que estão rente às cercas. Isso para não falar das barracas de concreto, as nossas são de madeira, erguidas por outros particulares em outras partes de Boipeba e que também ficam à beira mar. Por isso nós perguntamos: por que eles podem e nós não podemos?”, questionou outro barraqueiro que preferiu não se identificar.

De acordo com o defensor público da União, Vladimir Correia, que integra o GT e ingressará com ação em favor da comunidade por sua condição de vulnerabilidade, o caso traz indícios de racismo ambiental.

“A gente percebe nitidamente que os processos de degradação ambiental são mais acentuados em localidades que contam com população vulnerável, predominantemente negra, que recebem menor proteção do Estado. Nestes lugares, em geral, acaba por ocorrer uma fiscalização leniente com pessoas em situação econômica privilegiada e uma fiscalização rigorosa que acaba por oprimir os que integram grupos pobres e, especialmente, negros”, comenta Vladimir Correia.

O defensor público federal diz que ingressará no processo que está aberto na Justiça com relação às barracas em defesa da comunidade por sua vulnerabilidade e, além disso, requisitará informações à Secretaria de Segurança Pública e à Prefeitura de Cairu sobre como procedem nos casos de retiradas de barracas na área.

Propriedade das terras

A Constituição Brasileira estabeleceu que as ilhas que não são sede administrativa de município pertencem à União. Este é o caso de Boipeba e Tinharé que integram o município de Cairu. Embora os proprietários muitas vezes tenham títulos de propriedade registrados anteriormente, eles se tornaram nulos para reivindicar propriedade nestas áreas, ainda que possam servir para reivindicar indenização. O tema já foi objeto também de posição do órgão responsável pela questão, a Secretaria de Patrimônio da União, que já confirmou o entendimento constitucional.

Só podem ser consideradas proprietárias das terras nessas áreas comunidades quilombolas reconhecidas e tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Já para utilizar as áreas há dois instrumentos: o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), que é um instrumento para posse e uso sustentável das terras da União, ou uma Concessão de Direito Real de Uso, que é concedida para utilização por entes privados.

Grupo de Trabalho Interinstitucional

O GT Interstitucional do Baixo Sul atua buscando assegurar os direitos humanos e fundamentais de comunidades vulneráveis nesta região baiana, notadamente comunidades quilombolas e tradicionais. Composto por diversos órgãos e entidades da sociedade civil organizada. O esforço do GT é por articular canais de diálogo entre os poderes públicos com o objetivo de fazer valer efetivamente as garantias legais destas populações, preferencialmente por meios extrajudiciais.

Integram o GT, representantes da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE) e de sua Ouvidoria Cidadã, da Defensoria Pública da União (DPU), do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado (INEMA), da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (CDH-ALBA), da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), do Instituto Federal Baiano (IFbaiano), União de Negros e Negras pela Igualdade (UNEGRO), Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural, entre outras entidades.