Audiência destaca necessidade de solução negociada para disputa de terreno entre comunidade Nova Canaã e Coelba em Santo Antônio de Jesus
A necessidade imediata de manter suspensa decisão liminar da Justiça que autoriza a reintegração de posse da Coelba do terreno ocupado pelas famílias do movimento Nova Canaã em Santo Antônio de Jesus esteve no centro das preocupações da audiência pública virtual realizada pela Ouvidoria e a coordenação da 6a Regional da Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA na tarde desta quarta-feira, 21. Também marcaram o debate o destaque dado à busca para que se construa uma solução negociada do conflito fundiário já judicializado.
Promovida para abordar o tema, a audiência contou com a participação de moradores da ocupação, lideranças de movimentos pelo direito à moradia, secretarias de governo municipal e estadual, Ministério Público da Bahia, os deputados estaduais Hilton Coelho, Robinson Almeida e Neusa Cadore, representantes da Coelba, entre outras presenças, contando com a mediação da ouvidora geral da Defensoria, Sirlene Assis.
Embora sem datas marcadas, ficou decidido pela realização de reuniões entre as diversas partes presentes na audiência, e com responsabilidades pela questão, como o fim de avançar na busca de uma solução negociada para o conflito.
A defensora pública Natalie Navarro, que atua no processo, explicou que a suspensão da liminar se encerra no dia 31 de outubro e que se esta suspensão não for estendida, as famílias voltam a estar sob o risco de despejo a qualquer momento. A Defensoria, no entanto, já ingressou com pedido de ampliação da suspensão enquanto durar a situação de pandemia da Covid-19.
“A pergunta que devemos fazer é: se elas forem despejadas, elas irão para onde? E as casas que construíram com tanto suor? O terreno da Coelba estava completamente abandonado. As famílias são compostas por pessoas de baixa renda em grande situação de vulnerabilidade. O poder público e a própria Coelba não podem ser conveniente com uma violação de direitos humanos”, observou Navarro.
Bastante emocionada, a morada da ocupação Alessandra Rodrigues resumiu o estado de espírito dos ocupantes. “Não tem coisa pior que a gente dormir, ou melhor, nem conseguir dormir, pensando em ser despejada. Nós precisamos de uma resposta. Pedimos a todos que, com carinho, lutem para resolver esta situação. Queremos que o município e o Estado se posicionem com gestos concretos, palavras não irão resolver nossa situação. Se a Coelba tem projetos sociais por que não nos agraciar, nós do movimento”, disse.
Direito à moradia
Destacando que o direito à moradia é um direito humano e, no Brasil, está consagrado na Constituição como um direito social, a defensora pública e coordenadora da 6a Regional da DPE|BA com sede em Santo Antônio de Jesus, Carina Góes, destacou a necessidade do lar para assegurar dignidade às pessoas.
“A ausência de moradia não é só uma questão para quem não as tem. Engana-se quem assim pensa. Vivemos em sociedade. A garantia da dignidade do outro é também a garantia da ‘minha’ dignidade, o respeito à ‘minha’ vida, à vida de todo e qualquer ser humano. A comunidade de Nova Canaã reivindica manter-se onde está. São casas construídas com muito esforço ao longo do tempo. Não se deve mais falar em terreno ocupado, mas em comunidade organizada. Uma retirada das pessoas de lá causará graves danos às estas famílias”, assinalou Carina.
Outro morador do movimento Nova Canaã, o cadeirante Edicarlos dos Santos expressou sua condição para ocupar a área. “Eu ocupei aqui e estou morando não por falta de opção, é sem opção. Se me colocarem para fora daqui, vou para debaixo da ponte com minha mulher e filhos. Não tenho quem me acolha”, disse.
Para Dona Mira, liderança do Movimento dos Sem Teto da Bahia, é preciso denunciar que as ocupações ocorrem porque o direito à moradia não é garantido. “Na ausência de políticas públicas, se vê um terreno ocioso e ele é ocupado, como pontapé inicial, para que no futuro sejamos contemplados. Enquanto à Constituição não é cumprida, os movimentos sociais e populares estão aí para fazer acontecer”, disse.
Função social da propriedade
De acordo com o professor da Universidade Estadual da Bahia, Leonardo Fiuza, é preciso destacar também que a cidade de Santo Antônio de Jesus tem seu crescimento marcado pelo favorecimento das classes de maior renda, com grandes loteamentos para este público e a especulação imobiliária.
“As ocupações são muito criminalizadas, estigmatizadas, e as ocupações como está de Canaã, são alternativas que restam às famílias para garantir os direitos humanos fundamentais. Assim, diferente do que dizem, estas famílias estão cumprindo a lei e fazendo a reivindicação legítima de um direito previsto na Constituição. E digo mais, elas estão combatendo o crime, porque se o Estado não está cumprindo com seu dever, estas famílias ao ocuparem estão garantindo a função social da propriedade e impedindo que práticas criminosas como a especulação imobiliária vinguem”, disse Leonardo Fiuza.
Já o advogado e professor Valter Costa, que atuou em favor do movimento no princípio do processo, destacou diversos números sobre o déficit habitacional no país, ressaltando também o problema dos aluguéis na renda das pessoas. “Para que se tenha ideia, nos temos mais de seis milhões de imóveis vazios [aguardando serem valorizados ou alugados]. Atualmente entre 12 a 15 milhões de famílias brasileiras vivem em deficit habitacional por não terem condições de pagar seus aluguéis”, apontou.
A Coelba
Presentante na audiência, a representante da Coelba, Maria Helena Monteiro, disse que a empresa irá aguardar a manifestação da Justiça quanto ao pedido já feito pela Defensoria pela manutenção da suspensão da liminar. Monteiro alegou também que a ocupação vem crescendo já que desde o começo do litígio judicial o número de casas construídas aumentou, o que era impedido pelas decisões judiciais anteriores que não autorizavam esta ampliação.
“Há questões que ainda não foram enfrentadas pelas falas anteriores. As construções estão desrespeitando uma faixa de servidão, da linha de transmissão da Chesf que passa pelo terreno, estas informações estão no processo. Então há um risco de segurança. Risco que também está presente porque há uma rede elétrica clandestina funcionando que trazem perigo para a população que ocupa este terreno”, afirmou Monteiro.
O conflito
A disputa pela área começou em 2018, quando a Coelba ingressou com ação de reintegração de posse do terreno que, antes abandonado, passou a ser ocupado por dezenas de famílias. Em julho deste ano, após atuação da DPE/BA, uma liminar que então assegurava à Coelba o direito de desocupação foi suspensa pelo Tribunal de Justiça da Bahia devido à pandemia do coronavírus.
A suspensão, no entanto, está fixada apenas até o dia 31 de outubro o que está causando apreensão aos ocupantes do movimento que conta hoje com 61 casas de alvenaria construídas, onde em muitos casos residem famílias compostas por crianças e idosos. Além disso, os moradores já estabeleceram um forte vínculo com a terra e praticam agricultura familiar como forma de subsistência.