Quilombo da Batateira sofre com dificuldade de acesso a serviços públicos e aguarda titulação de terras em área de cobiça imobiliária
Por Por Júlio Reis - DRT/BA 3352
Dificuldades no acesso à educação, à saúde e mesmo à água potável, além de preocupações com conflitos fundiários, marcam a vida de uma população de cerca de 150 pessoas que vivem na comunidade remanescente quilombola da Bateira na ilha de Tinharé, município de Cairu, no Baixo Sul da Bahia.
O relato dos problemas pelos nativos foi a tônica da visita do Grupo de Trabalho Interinstitucional do Baixo Sul, coordenado pela Ouvidoria Cidadã da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), que esteve no local na última quinta-feira, 16. A visita se insere no esforço do Grupo que atua buscando assegurar os direitos humanos e fundamentais de comunidades vulneráveis neste território de identidade baiano que é um dos principais destinos turísticos do estado.
A comunidade da Batateira vive de atividades como pesca, mariscagem e plantações de algumas variedades de frutas e hortaliças. Adaílton dos Santos, 28, um dos coordenadores da Associação Quilombola, registrou que a expectativa é de que o encontro possa produzir soluções para as situações enfrentadas.
“Nossa esperança é de que os representantes dos órgãos competentes aqui presentes compreendam nossas demandas e possam tomar providências no sentido de encaminhar resoluções a serviço do bem da comunidade. Nós precisamos muito desta ajuda. Além das questões de água e dos serviços públicos, dado o ambiente de especulação na região, nos interessa muito que seja concluído definitivamente o processo de titulação das nossas terras, para que a gente fique sossegado e isso fortaleça também as lutas de outras comunidades”, afirmou o morador.
Adaílton se referia ao processo de titulação das terras do quilombo que está em fase adiantada, uma vez que o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da comunidade já foi realizado e as terras do quilombo georreferenciadas. A titulação, com demarcação final, no entanto, se encontra sem novo andamento pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
“Esta visita foi muito importante. Conhecemos a força e a potência da organização da comunidade. Por meio de suas lideranças, o quilombo passa a compor o GT. Agora vamos dialogar e mediar com a prefeitura e órgãos competentes do Estado soluções para as demandas apresentadas. Por exemplo, vamos acionar a Bahia Pesca para que a comunidade tenha acesso a equipamentos e materiais para pesca e mediar com a Secretaria Estadual de Trabalho e Renda, o desenvolvimento de projetos de economia solidária”, comentou a ouvidora-geral da Defensoria, Sirlene Assis.
A Ouvidoria buscará também dialogar com a Secretaria de Patrimônio da União e o Incra para agilizar o processo de titulação das terras e, mais prontamente, de um Termo de Autorização de Uso Sustentável destas. Além disso, deve estabelecer um diálogo com a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial para saber quais foram os encaminhamentos que órgão tomou após visita que também realizou ao quilombo e viabilizar junto à Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional a oferta de um trator para uso dos moradores.
Acesso à água
Um dos principais problemas da comunidade é o acesso à água para consumo humano. As principais procedências de água são de pequenas fontes e cacimbas (espécie de poço raso). Anos atrás, um poço profundo chegou a ser perfurado, porém, por sua proximidade com o mar a água acabou se revelando salinizada.
A convite da Ouvidoria da DPE/BA, a Companhia de Engenharia Hídrica e de Saneamento da Bahia (Cerb) esteve representada no encontro pelo analista de processos técnicos William Santos. De acordo com o técnico, ficou evidente a necessidade da comunidade de fontes de água potável. A carência de água potável, inclusive, pode estar se refletindo em moléstias que foram relatadas, como diarréias em crianças.
“Vamos fazer uma reanálise do poço que já foi perfurado anteriormente para verificarmos a possibilidade de distribuição desta água ou quais seriam as melhores e mais adequadas opções técnicas. Concomitantemente, vamos avaliar a possibilidade de uso da água que eles já utilizam hoje, mas procedentes de uma estação de tratamento”, explicou o analista.
De acordo com William Santos, a Companhia pode celebrar um instrumento de convênio com a prefeitura onde após a realização do estudo e elaboração do projeto, a Cerb oferece os materiais necessários às intervenções, como tubulações e reservatórios e a municipalidade se responsabiliza por edificações e construções necessárias.
Educação e saúde
Outra grande dificuldade da comunidade é o acesso à educação pública. Para estudar as crianças pequenas se dirigem à escola e creche do povoado de Garapuá que fica a 7 km de distância por uma estrada de areia que só pode ser percorrida por tratores ou veículos de elevada tração.
O mesmo trator utilizado para o transporte das crianças serviu à chegada da comitiva do GT em Batateira. O veículo não possui uma separação entre o interior e o exterior. Além disso, o caminho é marcado por diversos sacolejos e os moradores disseram que não há nenhum responsável no veículo para cuidar das crianças durante o trajeto, apenas o motorista que segue na cabine de direção isolado do que ocorre na carroceria.
Já jovens e adultos se viram privados de seguir o estudo porque as aulas de ensino médio são noturnas e o transporte deixou de ser ofertado neste período. “Nesta situação somos três jovens e cinco adultos. É muito difícil caminhar esta distância na estrada de areia para ir e voltar todos os dias. Toma uma hora e meia para ir e outra hora e meia para voltar. Essa falta de estrutura é uma forma de forçar a gente a sair daqui, mas não vamos sair. Fora daqui somos peixes fora da água. O país já é muito injusto para que a gente continue sem poder estudar”, relatou indignada Glaudecy da Anunciação, 41.
Na área de saúde, os problemas são similares. Os moradores já não recebem visitas de agentes comunitários de saúde e precisam participar de um sistema de senhas para serem atendidos no posto de saúde de Garapuá, que é o mais próximo e onde um médico presta atendimento uma vez por semana. Além disso, a comunidade aponta que desconhece a existência de veículo apropriado para transporte de pessoas em casos de emergências que necessitam deslocamento com atendimento em saúde.
Questão fundiária
Por volta de 10 anos atrás, a comunidade foi alvo de um episódio de violência. Um fazendeiro da região, que reivindica as terras da comunidade, esteve no local com tratores e homens armados dizendo que destruiria as casas dos moradores que, em geral, são feitas de madeira. Algumas casas chegaram a ser destruídas e foi a partir daí que a comunidade passou a fortalecer sua luta pelo direito de propriedade sobre terras que ocupam a gerações.
Desde então, não foram mais registrados episódios de violência e uma decisão judicial estabelece que o fazendeiro não deve se aproximar da área da comunidade. Apesar disso, os moradores da Batateira seguem apreensivos com o tema da titulação das terras, já que há relatos de interesse de que fazendeiros e especuladores pretendem construir em terras da comunidade tanques de carcinicultura (para criação de camarões) e outros seguem vendendo áreas no local como se fossem reais proprietários destas.
A Defensoria Pública da União, inclusive, vem atuando em um processo que já suspendeu a construção de um empreendimento imobiliário na área da comunidade. “Nós vamos oficiar e cobrar o Incra para que finalize o processo de titulação o mais rápido possível. Vamos também atuar junto ao GT para, a partir de tratativas com a prefeitura, dar encaminhamentos aos problemas de educação e saúde que a comunidade enfrenta”, comentou o defensor federal Vladimir Correia, que integra a comitiva do GT.
Grupo de Trabalho Interinstitucional
O GT Interstitucional do Baixo Sul atua buscando assegurar os direitos humanos e fundamentais de comunidades vulneráveis nesta região baiana, notadamente comunidades quilombolas e tradicionais. Composto por diversos órgãos e entidades da sociedade civil organizada. O esforço do GT é por articular canais de diálogo entre os poderes públicos com o objetivo de fazer valer efetivamente as garantias legais destas populações preferencialmente por meios extrajudiciais.
Integram o GT, representantes da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE) e de sua Ouvidoria Cidadã, da Defensoria Pública da União (DPU), do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado (INEMA), da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (CDH-ALBA), da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), do Instituto Federal Baiano (IFbaiano), União de Negros e Negras pela Igualdade (UNEGRO), Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural, entre outros órgãos e entidades.